"Os calafates de Setúbal"
Gravura de J. Vaz publicada pela Revista "Occidente"
em 1 de Fevereiro de 1888
O calafate é uma profissão desaparecida e que remonta aos tempos da construção naval das naus portuguesas que se fizeram ao mar à descoberta de novas terras.
Na gíria marítima eram operários especializados - e assim tratados por "mestres" - a quem cabia o zelo de vedar com estopa de algodão embebida numa mistura de alcatrão as fendas entre tábuas dos navios por forma a evitar a entrada da água.
Olhando a gravura e a sua data, existiu em Setúbal um famoso calafate, António Maria Eusébio (1819-1911) conhecido na cidade por "O Calafate", uma personagem que juntou à sua profissão a arte de escrever versos populares que publicou aos 84 anos de idade.
Nunca saberemos se J. Vaz, o autor da gravura se inspirou nele e na sua profissão para nos dar o sugestivo quadro que se reproduz, mas sabemos que os seus versos de "cantador popular" reunidos apareceram em 1901 sob o título: "Versos do Cantador de Setúbal" que mereceram um "Prefácio" de Guerra Junqueiro e que a cidade honrou este homem bom, em 1968 com um busto em bronze e que se encontra no Parque do Bonfim.
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AVE-MARIAS
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal
melancolia,
Que as sombras, o bulício, o
Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo
de sofrer.
O céu parece baixo e de
neblina,
O gás extravasado enjoa-me,
perturba-me;
E os edifícios, com as
chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e
londrina.
Batem os carros de aluguer, ao
fundo,
Levando à via-férrea os que se
vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista,
exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim,
Sampetersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com
viveiros,
As edificações somente
emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das
badaladas,
Saltam de viga em viga, os
mestres carpinteiros.
Voltam os calafates, aos
magotes,
De jaquetão ao ombro,
enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por
boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se
atracam botes.
E evoco, então, as crónicas
navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo
ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um
livro a nado!
Singram soberbas naus que eu
não verei jamais!
E o fim da tarde inspira-me; e
incomoda!
De um couraçado inglês vogam os
escaleres;
E em terra num tinido de louças
e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns
hotéis da moda.
Num trem de praça arengam dois
dentistas;
Um trôpego arlequim braceja
numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas
varandas;
Às portas, em cabelo,
enfadam-se os lojistas!
Vazam-se os arsenais e as
oficinas;
Reluz, viscoso, o rio,
apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas,
galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam
as varinas.
Vêm sacudindo as ancas
opulentas!
Seus troncos varonis
recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam
nas canastras
Os filhos que depois naufragam
nas tormentas.
Descalças! Nas descargas de
carvão,
Desde manhã à noite, a bordo
das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde
miam gatas,
E o peixe podre gera os focos
de infecção!
Os "mestres calafates" já se foram embora, mas deles ficou a bela recordação dos homens bons desta terra que na humildade das suas profissões conseguiram deixar para os que sucederam - e com toda a justiça - lembranças que apagadas pelo devir dos tempos, não podem deixar de merecer a homenagem que lhes é devida, tal como a que lhe prestou Cesário Verde e a municipalidade da cidade de Setúbal a António Maria Eusébio "O Calafate"
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