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sexta-feira, 31 de julho de 2015

Os mestres calafates


"Os calafates de Setúbal"
Gravura de J. Vaz  publicada pela Revista "Occidente" 
em 1 de Fevereiro de 1888


O calafate é uma profissão desaparecida e que remonta aos tempos da construção naval das naus portuguesas que se fizeram ao mar à descoberta de novas terras.
Na gíria marítima eram operários especializados - e assim tratados por "mestres" - a quem cabia o zelo de vedar com estopa de algodão embebida numa mistura de alcatrão as fendas entre tábuas dos navios por forma a evitar a entrada da água.

Olhando a gravura e a sua data, existiu em Setúbal um famoso calafate, António Maria Eusébio (1819-1911) conhecido na cidade por "O Calafate", uma personagem que juntou à sua profissão a arte de escrever versos populares que publicou aos 84 anos de idade.

Nunca saberemos se J. Vaz, o autor da gravura se inspirou nele e na sua profissão para nos dar o sugestivo quadro que se reproduz, mas sabemos que os seus versos de "cantador popular" reunidos apareceram em 1901 sob o título: "Versos do Cantador de Setúbal" que mereceram um "Prefácio" de Guerra Junqueiro e que a cidade honrou este homem bom, em 1968 com um busto em bronze e que se encontra no Parque do Bonfim.


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E é neste desfiar do novelo das ideias que surge o insigne Poeta Cesário Verde, que na sua poesia tendo sido um acrisolado "pintor" de quadros urbanos não esqueceu "os mestres calafates", e como testemunho do amor que tinha por eles - e outras profissões de que nos fala - fá-los viver no seu poema AVE-MARIAS, onde eles surgem de volta do trabalho, dando-nos deles uma "pincelada" breve, mas intencional, como aliás, aconteceu com todas as figuras que nos deixou imorredoiras, nos seus versos.

AVE-MARIAS

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!



Os "mestres calafates" já se foram embora, mas deles ficou a bela recordação dos homens bons desta terra que na humildade das suas profissões conseguiram deixar para os que sucederam - e com toda a justiça - lembranças que apagadas pelo devir dos tempos, não podem deixar de merecer a homenagem que lhes é devida, tal como a que lhe prestou Cesário Verde e a municipalidade da cidade de Setúbal a António Maria Eusébio "O Calafate"


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