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quinta-feira, 2 de julho de 2015

Canção - Um poema de Guerra Junqueiro (1850-1923)



Canção

Que durmam, muito embora, os pálidos amantes
Que andam contemplando a lua branca e fria;
Levantai-vos, heróis e despertai  gigantes!
Já canta pelo azul sereno a cotovia
E já rasga o arado  as terras fumegantes.

Entra-nos pelo peito em borbotões joviais
Este sangue de luz que a madrugada entorna!
Poetas, que somos nós? Ferreiros de arsenais:
É bater, bater com alma na bigorna
As estrofes de bronze - as lanças e os punhais!

Acendei a fornalha imensa - a inspiração.
Dai-lhe lenha: a verdade, a justiça, o direito.
O entusiasmo, a loucura, a febre, a indignação;
E, p'ra que a labareda irrompa, abri o peito
E atirai à fornalha em brasa - o coração!

Há-de-nos devorar, talvez, o incêndio, embora!
O poeta é como o sol: o fogo que ele encerra
É quem espalha a luz nessa amplidão sonora;
Queimemo-nos a nós iluminando a terra!
Somos lava, e a lava é quem produz a aurora!

Guerra Junqueiro
in, Revista "Occidente"1º ano - volume 1 - nº 11
                       1 de Junho de 1878 


Quando se lê Guerra Junqueiro, ninguém fica indiferente à força rítmica e à pureza literária dos seus versos, que são - como estes que fui descobrir na antiga publicação acima referida - onde ele se fez ferreiro dentro daquela liberdade literária que só é concedida à Poesia e aos seus cultores, e por isso, bateu com alma em cima da bigorna da sua inspiração todos os versos, como se eles fossem lanças e punhais.

Assim escreveu, porque assim viveu!
Quando escreveu esta poesia - levando em conta o ano da sua publicação - Guerra Junqueiro teria 28 anos.

Vivia a idade dos grandes combates que ele travou com o mundo que conheceu numa Monarquia Constitucional que já suspirava pela República e os "ares" que ele bebeu na "Geração de 70" fê-lo abandonar o regime monárquico, e logo após o Ultimatum Inglês, desiludido, abraçou o republicanismo.

Espírito ardente, este poema é bem o retrato do homem que ele foi enquanto combatente das ideias e das crenças, mesmo das mais sagradas, pelo que, se poderá parecer um exaltamento indevido do poeta quando afirma aos seus iguais: Queimemo-nos nós iluminado a terra / Somos lava, e a lava é que produz a aurora, Junqueiro deixa-nos a pensar no que quis transmitir, parecendo que, pese embora, tudo quanto nos escapa da sobrenaturalidade que nos faz existir, compete-nos produzir um pouco da luz da "aurora" e ajudá-la a romper, sendo esta "aurora" aquilo que se ilumina em nós, quando deixamos que tal aconteça.

Guerra Junqueiro, no seu íntimo, sabia muito bem que que a lava - a parte divina que habita o coração do homem e ele atirou à fornalha em brasa - era bem capaz de em si mesmo e naqueles a quem dirige o poema, produzir a "aurora" com a chama que cabe a cada um ajudar a acender na grande fornalha do Mundo.

Pena que andemos distraídos e não saibamos que somos uma lava capaz de produzir as "auroras" para que fomos criados e para as quais devemos viver!

                                          É bater, bater com alma na bigorna. 

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