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sábado, 2 de agosto de 2014

Preito (um poema de Miguel Torga)


Retrato a carvão de Isolino Vaz (1961)
in, Miguel Torga - Fotobiografia,  de Clara Rocha

                                                       
        
                                   Ah, fogueteiro!
                                   Desculpa esta rasteira inspiração.
                                   Tu é que tens o lume e a fantasia!
                                   Tu é que sabes onde os sonhos vão!
                                   O teu génio é que sobe e alumia!

                                   Eu
                                   Olho apenas o céu
                                   Como o aceno azul dum paraíso imenso
                                   Proibido e suspenso.

                                  O céu onde só podem caminhar
                                  Meteoros a arder.
                                  O alto céu deserto
                                  Onde tu, fogueteiro,
                                  Fazes voar o coração liberto
                                  Como um pássaro irreal e aventureiro!

                                   In, "Orfeu Rebelde"

                   

Neste poema dedicado, possivelmente, ao fogueteiro da sua terra transmontana, ou quem sabe, ao próprio fogueteiro da sua meninice em S. Martinho de Anta, há, latente, a ausência - no Poeta -  do céu prometido por Deus aos homens, algo que foi uma crença que se esvaiu das suas preocupações transcendentais desde os tempos da Faculdade, em Coimbra e, depois, quando no exercício da Medicina, pela impotência que sentia na salvação dos seus doentes.

Compreende-se, assim, que ele diga em seu desfavor, o que ele sentia da alegria que havia na alma do fogueteiro, quando ele elevava para o céu o produto da sua arte, enquanto, ele, de si mesmo dizia:

Eu
Olho apenas o céu
Como o aceno azul dum paraíso imenso
Proibido e suspenso.

O transcendente foi o problema do grande Poeta que ele foi e, muito embora, o problema de Deus tenha sido nele contraditório, porque ele pensou - e muito em Deus como se fosse um Nada - mas tendo a noção que era esse Nada que o inquietava como se fosse um Deus verdadeiro, fazendo da ausência d'Ele a nostalgia que lhe acompanhou a vida, cantando, por isso, o alto céu deserto, onde só podiam caminhar meteoros a arder, advindo daí, a falta que sentia de haver um espaço para um caminho etéreo onde a sua alma se pudesse acoitar.

Há neste poema o dom sublime do Poeta que sente e se alegra com o fogueteiro da sua terra, que ele sente feliz, ao olhar o céu alumiado com a sua arte, em contraponto com a ausência que ele sentia,  por ter perdido a arte de acreditar e, para onde, o fogueteiro fazia voar o seu coração liberto, enquanto ele, Poeta - e dos maiores - olhava o céu como algo que a si mesmo proibira.

Fico a pensar, depois de ler e meditar sobre a obra poética vasta e original do homem puro que viveu no arcaboiço transmontano de Miguel Torga, que ele, pela veia poética se assemelhou ao fogueteiro profissional de quem disse: o teu génio é que sobe e alumia, quando ele, foi também um insigne "fogueteiro" das Letras, porque a pureza dos seus versos foram - e continuam a ser - "foguetes" que pairam nas auras de um céu, onde ficou para sempre vivo o estro telúrico do maior Poeta que houve em Portugal em todo o século em que viveu.

E, desse modo, Poeta, igual ao fogueteiro que exaltas, é o teu génio que sobe e alumia, porque é através da luz dos teus poemas que eu vejo, distinto e único, o teu brilho libertado das algemas que nunca entendeste e das quais te libertaste! 
Só por isso, acredito, que o Deus que nunca encontraste - mas pela vida que tiveste - te deu o céu onde estralejam, sonoros, os "foguetes" das extraordinárias poesias que nos deixaste!

               

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