Quase 160 anos depois de Alexandre Herculano ter recusado uma eleição para o Parlamento de então - isto aconteceu em 1858 - na actualidade, um grupo de personalidades gradas portuguesas criou um manifesto a propor uma reforma urgente do sistema eleitoral, com a finalidade de combater um sistema politico viciado, que não respeita a escolha dos deputados que conhecem a região pela qual concorrem ao Parlamento, mas são escolhidos pelos directórios partidários.
O manifesto dá pelo nome "Democracia de Qualidade" e vaia ser apresentado em 27 de Agosto de 2014.
Os signatários inclinam-se para "um modelo de
conjugação entre a eleição dos deputados em listas plurinominais e a introdução
de uma componente de círculos uninominais", que "garanta sempre a
proporcionalidade justa e impecável da representação parlamentar".
Clarividente, Alexandre Herculano advogou isto, mas os nossos homens públicos actuais não estão de acordo com a teoria da uninominalidade da eleição, pela simples razão que querem ser mais mestres que o grande mestre cívico que foi o eminente historiador que teve a arte de se refugiar em Vale de Lobos, farto de aturar os que no seu tempo, seguiam a cartilha, que salvas as devidas alterações programáticas, os de hoje, pretendem seguir contra a racionalidade política que não pode deixar de estar presente.
Eis o procedimento de Alexandre Herculano no já longínquo ano de 1858.
Carta aos Eleitores do Círculo de Sintra
de Alexandre Herculano
«A DESCENTRALIZAÇÃO É A CONDIÇÃO
IMPRETERÍVEL DA
ADMINISTRAÇÃO DO PAÍS PELO PAIS»
Este texto de Alexandre Herculano
é um bom resumo da sua teoria municipalista, que defendeu como salvaguarda das
prepotências do poder central, e que foi
a ideia base da pesquisa histórica sobre a Idade Média que realizou. A defesa
do municipalismo levou-o a condenar o Setembrismo, o Cabralismo e a
Regeneração, como abastardamento ou negação do liberalismo, porque defensores
do centralismo. Para Herculano o
alargamento da vida política à vida local era necessário para que «o governo
central possa representar o pensamento do País», e por isso defende a eleição
de campanário, isto é, a escolha do representante político em função do local
onde esse representante vivia, e unicamente pelos eleitores locais, os únicos
que conheciam os problemas do país real.
Ajuda, 22 de Maio de 1858
Sr. Redactor:
Tendo estado ausente no campo
alguns dias por negócios particulares achei, voltando a Lisboa, retardada no
correio a comunicação oficial da minha eleição de deputado pelo círculo 26.
Decidido a não aceitar aquela honrosa missão, era do meu dever dar imediata
razão de mim a quem assim me dera uma prova de apreço. Tardei talvez, mas a
culpa foi involuntária. da sua amizade espero que, dando quanto antes lugar no
seu jornal à inclusa carta, me ajude a remir de modo possível a minha falta.
Senhores eleitores do círculo
eleitoral de Sintra.
Acabais de me dar uma
demonstração de confiança, escolhendo-me para vosso procurador no parlamento:
sinto que me não seja permitido aceitá-la.
Se tal escolha não foi uma
daquelas inspirações que vêm ao mesmo tempo ao espírito do grande número, o que
é altamente improvável, porque o meu nome deve ser desconhecido para muitos de
vós; se alguém, se pessoas preponderantes nesse círculo, pelo conceito que vos
merecem, vos apresentaram a minha candidatura, andaram menos prudentemente,
fazendo-o sem me consultarem, e promovendo uma eleição inútil.
Há anos que os eleitores de um
círculo da Beira, na sua muita benevolência para comigo, pretenderam fazer-me a
honra que me fizestes agora. Um deles, um dos mais nobres, mais puros e mais
inteligentes caracteres dos muitos que conheço, sumidos, esquecidos, nessa
vasta granja da capital chamada – as províncias –, encarregou-se de vir a
Lisboa consultar-me. Respondi-lhe como a consciência me disse que lhe devia
responder, e o meu nome foi posto de parte. De Sintra a Lisboa, é mais perto, e
a comunicação mais fácil, do que dos remotos e quase impérvios sertões da
Beira.
Duas vezes nos comícios
populares, muitas na imprensa tenho manifestado a minha íntima convicção de que
nenhum círculo eleitoral deve escolher para seu representante indivíduo que lhe
não pertença; que por larga experiência não tenha conhecido as suas
necessidades e misérias, os seus recursos e esperanças; que não tenha com os
que o elegeram comunidade de interesses, interesses que variam, que se
modificam, e até se contradizem, de província para província, de distrito para
distrito, e às vezes de concelho para concelho. Esta doutrina, posto que tenha
vantagem no presente, reputo-a sobretudo importante pelo seu alcance, pelos
seus resultados em relação ao futuro. É, no meu modo de ver, o ponto de
Arquimedes, um fulcro de alavanca, dado o qual as gerações que vierem ‑depois de nós poderão lançar a sociedade num
molde mais português e mais sensato do que o actual, inutilizando as
cópias, ao mesmo tempo servis e bastardas, de instituições peregrinas, que em
meio século têm dado sobejas provas na sua terra natal do que podem e do que
valem para manterem a paz e a ordem públicas, e mais que uma honesta liberdade.
(…)
in, "O Portal da História"
O sublinhado é nosso.
É intencional, porque nele está reflectida a razão e a visão política do grande historiador, que infelizmente, a caturrice - para não lhe chamar outro nome - da classe política dominante, na actualidade, continua a ignorar, não para proveito do povo, a quem pedem o voto, mas para proveito próprio dos seus interesses imediatistas.
Pobre Portugal que continua a ter filhos que esquecem a lições dos seus maiores, dos tais que "se libertaram do sono da morte" e são símbolos que convém lembrar de vez em quando, para ver se a razão e a visão política se cruzam para bem da "rex publica".
Será que é possível que tal venha a acontecer?
in, "O Portal da História"
O sublinhado é nosso.
É intencional, porque nele está reflectida a razão e a visão política do grande historiador, que infelizmente, a caturrice - para não lhe chamar outro nome - da classe política dominante, na actualidade, continua a ignorar, não para proveito do povo, a quem pedem o voto, mas para proveito próprio dos seus interesses imediatistas.
Pobre Portugal que continua a ter filhos que esquecem a lições dos seus maiores, dos tais que "se libertaram do sono da morte" e são símbolos que convém lembrar de vez em quando, para ver se a razão e a visão política se cruzam para bem da "rex publica".
Será que é possível que tal venha a acontecer?
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