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terça-feira, 26 de agosto de 2014

Círculos uninominais: Razão e visão política de Alexandre Herculano





Quase 160 anos depois de Alexandre Herculano ter recusado uma eleição para o Parlamento de então - isto aconteceu em 1858 - na actualidade, um grupo de personalidades gradas portuguesas criou um manifesto a propor uma reforma urgente do sistema eleitoral, com a finalidade de combater um sistema politico viciado, que não respeita a escolha dos deputados que conhecem a região pela qual concorrem ao Parlamento, mas são escolhidos pelos directórios partidários.

O manifesto dá pelo nome "Democracia de Qualidade" e vaia ser apresentado em 27 de Agosto de 2014.

Os signatários inclinam-se para "um modelo de conjugação entre a eleição dos deputados em listas plurinominais e a introdução de uma componente de círculos uninominais", que "garanta sempre a proporcionalidade justa e impecável da representação parlamentar".

Clarividente, Alexandre Herculano advogou isto, mas os nossos homens públicos actuais não estão de acordo com a teoria da uninominalidade da eleição, pela simples razão que querem ser mais mestres que o grande mestre cívico que foi o eminente historiador que teve a arte de se refugiar em Vale de Lobos, farto de aturar os que no seu tempo, seguiam a cartilha, que salvas as devidas alterações programáticas, os de hoje, pretendem seguir contra a racionalidade política que não pode deixar de estar presente.


Eis o procedimento de Alexandre Herculano no já longínquo ano de 1858.


Carta aos Eleitores do Círculo de Sintra
de Alexandre Herculano


«A DESCENTRALIZAÇÃO É A CONDIÇÃO IMPRETERÍVEL DA
ADMINISTRAÇÃO DO PAÍS PELO PAIS»


Este texto de Alexandre Herculano é um bom resumo da sua teoria municipalista, que defendeu como salvaguarda das prepotências  do poder central, e que foi a ideia base da pesquisa histórica sobre a Idade Média que realizou. A defesa do municipalismo levou-o a condenar o Setembrismo, o Cabralismo e a Regeneração, como abastardamento ou negação do liberalismo, porque defensores do centralismo.  Para Herculano o alargamento da vida política à vida local era necessário para que «o governo central possa representar o pensamento do País», e por isso defende a eleição de campanário, isto é, a escolha do representante político em função do local onde esse representante vivia, e unicamente pelos eleitores locais, os únicos que conheciam os problemas do país real.

Ajuda, 22 de Maio de 1858

Sr. Redactor:

Tendo estado ausente no campo alguns dias por negócios particulares achei, voltando a Lisboa, retardada no correio a comunicação oficial da minha eleição de deputado pelo círculo 26. Decidido a não aceitar aquela honrosa missão, era do meu dever dar imediata razão de mim a quem assim me dera uma prova de apreço. Tardei talvez, mas a culpa foi involuntária. da sua amizade espero que, dando quanto antes lugar no seu jornal à inclusa carta, me ajude a remir de modo possível a minha falta.


Senhores eleitores do círculo eleitoral de Sintra.

Acabais de me dar uma demonstração de confiança, escolhendo-me para vosso procurador no parlamento: sinto que me não seja permitido aceitá-la.

Se tal escolha não foi uma daquelas inspirações que vêm ao mesmo tempo ao espírito do grande número, o que é altamente improvável, porque o meu nome deve ser desconhecido para muitos de vós; se alguém, se pessoas preponderantes nesse círculo, pelo conceito que vos merecem, vos apresentaram a minha candidatura, andaram menos prudentemente, fazendo-o sem me consultarem, e promovendo uma eleição inútil.

Há anos que os eleitores de um círculo da Beira, na sua muita benevolência para comigo, pretenderam fazer-me a honra que me fizestes agora. Um deles, um dos mais nobres, mais puros e mais inteligentes caracteres dos muitos que conheço, sumidos, esquecidos, nessa vasta granja da capital chamada – as províncias –, encarregou-se de vir a Lisboa consultar-me. Respondi-lhe como a consciência me disse que lhe devia responder, e o meu nome foi posto de parte. De Sintra a Lisboa, é mais perto, e a comunicação mais fácil, do que dos remotos e quase impérvios sertões da Beira.


Duas vezes nos comícios populares, muitas na imprensa tenho manifestado a minha íntima convicção de que nenhum círculo eleitoral deve escolher para seu representante indivíduo que lhe não pertença; que por larga experiência não tenha conhecido as suas necessidades e misérias, os seus recursos e esperanças; que não tenha com os que o elegeram comunidade de interesses, interesses que variam, que se modificam, e até se contradizem, de província para província, de distrito para distrito, e às vezes de concelho para concelho. Esta doutrina, posto que tenha vantagem no presente, reputo-a sobretudo importante pelo seu alcance, pelos seus resultados em relação ao futuro. É, no meu modo de ver, o ponto de Arquimedes, um fulcro de alavanca, dado o qual as gerações que vierem depois de nós poderão lançar a sociedade num molde mais português e mais sensato do que o actual, inutilizando as cópias, ao mesmo tempo servis e bastardas, de instituições peregrinas, que em meio século têm dado sobejas provas na sua terra natal do que podem e do que valem para manterem a paz e a ordem públicas, e mais que uma honesta liberdade. (…)

in, "O Portal da História"
O sublinhado é nosso.
É intencional, porque nele está reflectida a razão e a visão política do grande historiador, que infelizmente, a caturrice - para não lhe chamar outro nome - da classe política dominante, na actualidade, continua a ignorar, não para proveito do povo, a quem pedem o voto, mas para proveito próprio dos seus interesses imediatistas.
Pobre Portugal que continua a ter filhos que esquecem a lições dos seus maiores, dos tais que "se libertaram do sono da morte" e são símbolos que convém lembrar de vez em quando, para ver se a razão e a visão política se cruzam para bem da "rex publica".
Será que é possível que tal venha a acontecer?

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