Pesquisar neste blogue

sábado, 1 de junho de 2013

O relativismo moral



O relativismo moral com origem nos pensadores do Liberalismo que tem suas origens nos iluministas do século XVIII, deriva como uma consequência daquela doutrina que inspirou a  Revolução Francesa e foi geradora de um protestantismo político acérrimo e muitas vezes, acéfalo, é, actualmente, o monstro que vai enchendo as mentes mal preparadas, mesmo a nível universitário, criando defensores desta lei obtusa que tudo discute,  tudo sabe e tudo quer por em causa, porque nada é estável, pois tudo é relativo num mudo que se quer em mudança e onde o amanhã não é só um novo dia, mas um motivo de se por em causa, como antigo e desusado o dia que passou.
É o relativismo em marcha forçada.
É o mudar por mudar sem se dar conta que uma nova página de um qualquer livro é sempre um reflexo do enredo da página ou páginas anteriores.
É a chaga moral dos nossos dias, ao defender que a ideia do bem e do mal varia segundo os tempos e as sociedades, quando se sabe que a virtude moral assenta na sabedoria humana – que vem desde tempos imemoriais – a presidir ao controle das paixões e à escolha mais adequada para a consecução de um fim, contrariando a convicção relativista ao assumir que a verdade não existe e de que apenas existem as verdades de cada um, como se o joio se pudesse equivaler ao trigo das searas, que por si mesmo e impõe
É aqui que está, entre outros, um dos males do nosso tempo, como se não houvessem valores absolutos – como é a natureza do trigo -  mas apenas existe como caminho do homem a verdade que cada um constrói para si mesmo, com a agravante de a querer impor ao outro – pela falta de respeito que grassa, multiplicando-se como a mitológica Hidra de Lerna (1) donde nascem as fontes das discórdias e das guerras surdas que corroem as sociedades modernas, quando tem de ser no gregarismo do bem que o homem tem de se encontrar a si mesmo num amplexo que ao partir de cada um só deve terminar no Coração de Deus.
É preciso que o mundo esteja atento aos novos apaniguados dos relativismos do nosso tempo, especialmente, quando se trata da moralidade da actuação do homem perante o seu igual, pois, hoje como sempre aconteceu, com os percalços naturais da História  – e assim deve continuar a acontecer – a prudência onde assenta a lei moral está destinada a corrigir o intelecto, por forma a torná-lo capaz de avaliar com exactidão a bondade ou a malícia, ou seja, em conclusão, o carácter moral da acção do homem, estribado em três pilares fundamentais, o da temperança que adverte para o apetite libertino, o da fortaleza que faz regredir o apetite irascível e o da justiça que rege os comportamentos saudáveis.
Mas Deus vive por cima de todos os relativismos no coração de todos os homens, onde a lei moral está inscrita, e onde a consciência individual o impele a formular juízos morais assentes na distinção entre o bem e o mal, bem ao contrário do que fizeram os falsos profetas do século XX, como Nietzsche, Freud, Lenine, Estaline, Hitler e Mussolini – que procuraram – e conseguiram de certo modo acorrentar - ridicularizando a ideia de consciência individual e impondo, quer pelo pensamento, quer pela força bruta das armas e da coacção política, a lei do mais forte, retirando ao indivíduo a lei da sua liberdade de pensamento, que é, afinal, a lei onde o Espírito ganha asas e pensa por si, pensando que aquela liberdade é a única que ninguém pode acorrentar, porque não há relativismos que a verguem quando ela se funda em princípios que a sabedoria milenar dos tempos guarda com sofreguidão dogmas – há que dizê-lo com frontalidade – que têm de ser defendidos em face de um mundo relativista, e consumista não só de bens materiais, como de espirituais, que a todo o custo quer subverter.


(1) - A Hidra de Lerna na História da Mitologia:  Serpente monstruosa, imaginada com sete, nove, cem ou mais cabeças que, quando cortadas renasciam se, na parte decepada, não se pusesse imediatamente fogo. Com o sangue da Hidra, Héracles impregnava as suas flechas. Infestava os campos nas proximidades de Lerna, nas vizinhanças de Argos. Foi transformada em Constelação austral


O poder da graça




Pela graça, a alma é atingida no mais profundo do seu ser, de modo que bem se pode falar de uma “nova criação”, de uma “nova vida”. É por isso que S. Paulo fala do cristianismo em graça como de “uma nova criatura em Cristo” (2 Cor 5, 17), de um “homem novo, criado segundo Deus na justiça e na santidade verdadeiras (Ef 4, 24).
António Orozco Delclos
in, Olhar para Maria
A graça é  o dom sobrenatural dado por Deus aos nossos primeiros pais, quando estabeleceu com eles uma vizinhança de amizade, que afinal, acabou por ser perdida, mas sem que isso tivesse constituído para o género humano um abandono divino pelo pecado cometido, dando-lhes num acto de clemência,  o poder da regeneração através da graça actual e graça santificante.
Sem as ter como um bem da alma, o homem vive na subjugação de forças que condicionam a sua vontade estando longe de ter vida independente, mas antes, sujeito a pressões externas individuais ou colectivas geradoras de actos que arruínam os seus direitos naturais inalienáveis, indo em casos extremos ao ponto de o levar a aceitar o jugo dessas forças como um proveito que lhe aconteceu.
É a escravidão perante o mal a falta do poder da graça actual, o primeiro degrau do caminho do homem à sua participação na vida divina pelo arrependimento que o faz crescer espiritualmente através da acção do Espírito Santo, que age sempre, quer seja através de uma leitura ou de uma pregação.
A graça actual é um movimento interior que leva o pecador a reencontrar –se, sem qualquer violência do meio, porquanto a acção que o faz mover é de ordem superior, distribuindo-se por todos os homens, justos e pecadores, numa infusão de mercês que teve o seu zénite com a advento do Pentecostes, onde os homens foram chamados a uma cooperação mais efectiva com o Espírito Santo pela acção dos santos apóstolos.
Tendeu, desde então, a renovação e  transformação do “homem velho” no “homem novo”.
É neste “homem novo” que reside o degrau da graça santificante que o leva a cooperar com a graça actual e o faz participante em definitivo da amizade de Deus, ao dar à sua alma a beleza permanente de quem alberga em si mesmo a morada do Espírito Santo.
Possuído dela, a alma do homem é atingida no mais profundo do seu ser, podendo com toda a naturalidade afirmar-se que na graça santificante se pode falar de uma “nova criação”, ou seja do homem regenerado, como se lhe tivesse sido dada uma nova vida, pois nela, efectivamente, já ficou depositado o gérmen da vida eterna.
Neste estádio o homem vivendo perto de Deus é, naturalmente, direccionado para o cumprimento das boas obras pela acção do Espírito Santo que renova nele o mistério do baptismo de Jesus, porque pelo dom baptismal fomos libertados do espírito de escravidão e que ao libertar-nos do pecado, pela graça alcançada, nos tornamos filhos dilecto de Deus e co- herdeiros do Filho que Ele enviou como dispensador de todas as graças.
S. Paulo assim o disse e no-lo deixou escrito para nosso bem e reflexão, quando ao apontar o homem que aceitou centrar a sua vida pela assunção do cristianismo em graça como de “uma nova criatura em Cristo, lhe deu, por inspiração divina o poder de expressar o seu pensamento, afirmando que nele está, verdadeiramente, um “homem novo, criado segundo Deus na justiça e na santidade verdadeiras.

O pobre que ninguém escuta



(…) Pobre é aquele que sempre escuta e que ninguém escuta. O pobre sempre escutou.(…) Quanto a si ninguém o escutou durante o dia. Aqui está a raiz de toda a pobreza. Quando assim se define o pobre: aquele que escuta sempre e ninguém o escuta, transcreve-se a palavra do Eclesiastes:”A sabedoria do pobre é desprezada e suas palavras não são ouvidas” (Ecl 9, 16). Sua palavra é desprezada, ninguém lhe presta atenção.
Jacques Loew
in, Jesus Chamado o Cristo


Jacques Loew, antes de se ordenar sacerdote, era um advogado profundamente marcado pelas condições miseráveis dos estivadores do porto de Marselha, onde viria a descobrir uma grande miséria física e moral entre os portuários, mas o grande choque foi ver, na vivência diária a ausência de Deus, o que brutalizava mais aquele ambiente pesado.
Foi viver com eles, numa casa alugada, o que causou espanto ao ver-se um sacerdote intrometido entre os operários, trabalhando como eles e auferindo o salário deles, escandalizando a própria Igreja, avessa àquele entendimento.
Mas foi aquele meio pobre onde Deus estava ausente que o fez descrever o admirável conceito do que é ser pobre, como alguém que tendo ouvidos não é escutado e tendo fala não é ouvido.
Há um provérbio bem demonstrativo da desumanidade que caracteriza alguma sociedade doente do nosso tempo onde se movem os deserdados da sorte: entre o rico e o pobre não há parentesco, como se o homem se tivesse esquecido de uma vez para sempre do velho conceito que Moisés proclamou na terra de Moabe, (Dt 1,17): Não fareis acepção de pessoas em juízo; de um mesmo modo ouvireis o pequeno e o grande; não temereis a face de ninguém, porque o juízo é de Deus; e a causa que vos for difícil demais, a trareis a mim, e eu a ouvirei.
Deus falou assim através de Moisés.
No entanto, o homem, cheio de si mesmo trocou-lhe as voltas e, ainda que o velho patriarca tenha dito que não era lícito fazer acepção de pessoas e em qualquer assunto seria ouvido o pequeno e o grande, numa clara alusão ao facto de todos os homens estarem submetidos às mesmas leis da Natureza, nascendo fracos, sujeitos às mesmas dores, destruindo-se o corpo do rico como o do pobre, mesmo assim, aquilo a que assistimos é uma contínua subjugação do pobre ao mais rico ou mais forte, de quem tudo escuta, mesmo os impropérios, sem nunca ter a felicidade de serem ouvidas as suas razões, ainda que sejam por demais pertinentes.
E, no entanto, na Sua imensa Sabedoria, Deus a nenhum homem concedeu superioridade natural, sendo todos iguais perante Ele, resultando desta vontade divina que  a diversidade das aptidões entre os homens – que dá a uns um conceito mais elevado na falaciosa escala de valores sociais, não deriva da natureza íntima de cada um,  mas do grau de riqueza ou cultura e de que alguns não abdicam a favor do que menos tem ou menos sabe.
Esquece, no entanto, todo aquele que faz ouvidos moucos às queixas do pobre que nele existe a sabedoria dos simples, dos que de tanto terem ouvido e sem poderem falar, transportam consigo riquezas infindas de experiência humana, onde Jesus que se fez pobre, lhes dirá, um dia: Vinde, benditos de meu Pai. Possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo, porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me acolhestes (…) Então os justos lhe perguntarão: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber? Quando te vimos forasteiro, e te acolhemos? ou nu, e te vestimos? Quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos visitar-te?
E virá a resposta pronta: (…) sempre que o fizestes a um destes meus irmãos, mesmo dos mais pequeninos, a mim o fizestes.
O ANTIGO E SEMPRE NOVO 
SISTEMA DE IRRIGAÇÃO

Gravura publicada pelo jornal "O António Maria" de 6 de Janeiro de 1881
 
 
Magistralmente, na época, Bordalo Pinheiro caracterizou com este boneco o que se passava na vida nacional, ou seja, com o povo a dormir apoiado na própria albarda com que carregava todos os pesos que lhe punham em cima, mais uma vez, os alcatruzes da nora - que ele trazia consigo sem saber - iam ao fundo buscar-lhe as magras poupanças.
Hoje, tudo se passa de forma semelhante, mas com a diferença - importante - que o povo não é o mesmo e dá-se conta, nem sempre a tempo como convinha, do momento em que lhe estão a meter a mão na algibeira.
Usa o Estado para tanto, o antigo e sempre novo sistema de irrigação com que sempre se pretenderam - e conseguiram - regar as leiras exauridas da contas públicas. Só que, a nora dá a volta inteira e, no momento, está a chegar ao cimo de alcatruzes vazios.
Esse é que é o problema que passou a ser deles, mas com esta coisa estranha: os problemas deles são sempre nossos, como acontece e é exemplo a chamada TSU dos reformados que dentro do próprio Estado, uma parte diz "só por cima do meu cadáver" e a outra parte - a que é mais importante pela força do voto - diz que só será aplicada, mas em última instância...
Não se entendem... mas nós entendemos o desnorte das cabeças sem rei nem roque que não desistem, apesar do poço dos reformados estar seco.
Será que eles não sabe?
Vão meter a mão - que é, como quem diz - avão meter a nora noutro lado.
Por exemplo, no poço das swap's que ajudaram a arruinar o País.
Ao que parece, é um poço bem fundo onde se podia ir buscar "água fresca " em vez de, com o Orçamento rectificativo que vai ser apresentado haver reforço de empréstimos e doações às Empresas Públicas  - que contam para o descalabro do défice - e, assim, permitir a liquidação dos malfadados contratos swap´s irresponsavelmente subscritos nos últimos anos, num tempo em que tendo apanhado o "Zé Povinho" a dormir - tal como ilustra a gravura - fizeram dele gato sapato, pois só agora é tomou conhecimento da asneira de alguns gestores da coisa pública.
Mas, por favor, haja vergonha e mais respeito.
Acabou-se a água no poço dos reformados.
 

CONSIDERAÇÕES SOBRE
A "HARPA DO CRENTE"

 


Alexandre Herculano tinha 27 anos quando escreveu “A Harpa do Crente”, dizendo que é o poema da minha mocidade., como declara no rodapé do poema “A Semana Santa”, afirmando: Quando compus estes versos (...) ainda eu cria conceber toda a magnificência do grande drama do cristianismo, e que a minha harpa estava afinada para cantar um tal objecto. Enganava-me: a Semana Santa do poeta não saiu semelhante à Semana Santa da religião. O que é esta de feito? Um poema representado, um drama, cuja essência é um facto universal, o maior de todos; o que veio mudar ideias, civilização e destinos do género humano inteiro.
O grande escritor viveu em França em 1832 na condição de refugiado por ter participado em 21 de Agosto de 1831 no levantamento do Quarto Batalhão de Infantaria apostado em implantar as ideias liberais, movimento que foi esmagado pelas forças governamentais de D. Miguel, cumprindo um exílio europeu entre 21 de agosto de 1831 e o final de Fevereiro de 1832.
Este episódio marcaria para sempre a sua vida, ao familiarizar-se em Rennes e Paris com as leituras de um cristianismo liberal representado pelo grupo do jornal Avenir, aparecido em Paris em 1830, sob a orientação de Lamennais (1) com a finalidade de conciliar a vivência cristã com os ideais da revolução burguesa, apregoando a separação da Igreja do Estado e defendendo a conquista da Liberdade, também para o proletariado.
Esta vivência consolidou em Herculano uma concepção religiosa do homem, como resultado do influxo da Bíblia, especialmente dos escritos de São Paulo na sua vida de pensador interessado na sorte dos seus concidadãos e que ele haveria de explanar nas suas poesias da juventude.
Em “A Harpa do Crente”,  na 1ª estrofe, Herculano, interpretando o que sentia de negativo nos homens e na sociedade dos seu tempo, fala-nos do vento oeste que passa, para nos alertar das nossas fraquezas humanas. Diz, assim:
 
(...) O oeste passa
Mudo nos troncos da alameda antiga,
Que à voz da Primavera os gomos brota:
O oeste passa mudo, e cruza o átrio
Pontiagudo do templo, edificado
Por mãos duras de avós, em monumento
De uma herança de fé que nos legaram,
A nós seus netos, homens de alto esforço,
Que nos rimos da herança, e que insultamos
A Cruz e o templo e a crença de outras eras;
..............................................................................
E contra aqueles que pela pena do Poeta dizem, sem apreço: Que nos rimos da herança, e que insultamos / A Cruz e o templo e a crença de outras eras, conclui, na 2ª estrofe, o seu pensamento, como se, com a sua atitude de ir pedir aos túmulos dos velhos / Religioso entusiasmo e canto novo quisesse – como peregrino que era  -  redimir os homens seus contemporâneos de viverem longe de Deus.
 
Oh, sim! – rude amador de antigos sonhos,
Irei pedir aos túmulos dos velhos
Religioso entusiasmo; e canto novo
Hei-de tecer, que os homens do futuro
Entenderão; um canto escarnecido
Pelos filhos dest' época mesquinha.
Em que vim peregrino a ver o mundo (...)
 
Alexandre Herculano, não é, como se sabe, um escritor pelo qual a Igreja tenha um grande apreço e, no entanto, este homem de eleição foi um crente em Deus e cantor da Cruz onde Jesus morreu, tendo-nos deixado esse soberbo quadro da Cruz Mutilada, que ele encontrou, um dia no monte, perto do Convento do Carmo, em Sintra.
A Cruz do grande Martírio estava coberta de hera e tinha um braço partido.
E é desse encontro místico que ele fez e nos legou para sempre o poema que fez inserir em “A Harpa do Crente” e que diz assim:
 
Amo-te, ó cruz, no vértice, firmada
      De esplêndidas igrejas;
Amo-te quando à noite, sobre a campa,
      Junto ao cipreste alvejas;
Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
      As preces te rodeiam;
Amo-te quando em préstito festivo
      As multidões te hasteiam;
Amo-te erguida no cruzeiro antigo,
      No adro do presbitério,
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
      Guias ao cemitério(...)
............................................................................
E eu te encontrei, num alcantil agreste,
Meia quebrada, ó cruz. Sozinha estavas
Ao pôr do Sol, e ao elevar-se a Lua
Detrás do calvo cerro. A soledade
Não te pôde valer contra a mão ímpia,
Que te feriu sem dó. As linhas puras
De teu perfil, falhadas, tortuosas,
Ó mutilada cruz, falam de um crime
Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil!
A tua sombra estampa-se no solo,
Como a sombra de antigo monumento,
Que o tempo quase derrocou, truncada.
No pedestal musgoso, em que te ergueram
Nossos avós, eu me assentei. (...)
 
Fiquemos por aqui, imaginado Herculano, condoído da sorte daquela Cruz que era uma imagem do sofrimento e da Glória de Cristo, tendo-se sentado no pedestal musgoso, onde, um dia, os nossos avós a tinham fundado na aspereza do monte, para sofrer ali, na solidão a investida de uma mão sacrílega que lhe ceifou um dos braços.
Fiquemos por aqui, mas teçamos uma homenagem ao Homem que não tendo sido um paroquiano zeloso de uma qualquer Igreja local, foi um crente.
Alguém que soube entender o verdadeiro sentido religioso do homem e por ele viveu e cantou.


(1) -  Felicité Robert de Lamennais, escritor francês (1782 – 1854). Recebeu a ordenação presbiterial, tornou-se um arauto do ulramontanismo e liberdade religiosa. A sua acção levou o Papa Gregório XVI condenado as suas ideias, em 1832. Tal facto fez que Lamennais tenha rompido definitivamente com a Igreja, tendo convertido a um humanismo socializante. As suas obras principais, são: Ensaio sobre a indiferença em matéria de religião (1823) e Palavras de um crente (1834)
 

O bom profissional e a ética apostólica



Só o cristão que encara com seriedade a sua tarefa profissional e humana – cultural, artística, política económica, na diversidade de ofícios e profissões – está em condições de um diálogo com os outros homens que possa ter eficácia apostólica.
Pedro Rodrigues
in, Cristãos de Hoje – Cap. “Caminho” e a Espiritualidade do Opus Dei


O autor cita a propósito o nº 371 de “Caminho”  que diz textualmente: Quando fervilham, chefiando manifestações exteriores de religiosidade, pessoas profissionalmente mal conceituadas, com certeza sentis vontade de lhes dizer ao ouvido: por favor tenham a bondade de ser menos católicos.
É uma observação cheia de sentido, dirigida por Mons. Balaguer a todos aqueles apelidados de “católicos oficiais”, isto é, de bem com as hierarquias eclesiásticas, mas de mal com a vocação humana que não pode consentir, na economia da graça, pessoas que não sejam devidamente conceituadas quanto ao modo como exercem, socialmente, as suas profissões, das mais humildes às mais elevadas.
De que serve, pois, ao homem, aparecer liderando acontecimentos sociais sob a capa da Igreja e em nome da doutrina de Jesus e não dar cumprimento como lhe é pedido quanto ao esforço e competência no uso da sua profissão?
Entronca-se isto no nº 513 do “Catecismo da Igreja Católica”. Com efeito, trabalhando com empenho e competência, a pessoa põe em acção capacidades inscritas na sua natureza, exalta os dons do Criador e os talentos recebidos, sustenta-se a si e aos seus familiares, serve a comunidade humana. (…) atendendo a que esta deve fazer parte das suas preocupações na linha fraterna que liga o homem ao outro, na linha orientadora de  um outro documento da Igreja, ao afirmar que o trabalho humano possui também uma intrínseca dimensão social. O trabalho dum homem, com efeito, entrelaça-se naturalmente com o de outros homens(..) oferecendo, deste modo, ocasiões de intercâmbio, de relações e encontro, o que muito dificilmente acontece, quando o homem, como diz Pedro Rodrigues não encara com seriedade a sua tarefa profissional e humana, pois não é exemplo para ninguém.
O anúncio da Palavra de Deus, faz-se precisamente, através do exemplar testemunho de uma vida fundida nas realidades temporais, de onde avulta, entre outros, o compromisso profissional no âmbito do trabalho, para além da cultura, da ciência e da investigação, porque todos os compromissos das realidades seculares devidamente assumidas são exemplos do amor de Deus de que o homem se faz portador para a comunidade de que é membro.  
Sem descurar este pensamento, o autor do pequeno texto que nos serve de reflexão, não tem dúvidas em afirmar que só o homem que não mascara o catolicismo  está em condições de um diálogo com os outros homens que possa ter eficácia apostólica, o que parecendo uma dureza de análise, é, no entanto, a grande verdade que tem de ser dita a todos os “católicos oficiais” que esquecendo-se de o ser na pureza apostólica de Jesus, exercem pelas sua posições sociais, mandatos onde exorbitam, por demais, atitudes que contradizem na prática, empenhamentos sociais que deviam ser inatacáveis, e não o sendo por não terem na esfera profissional comportamentos dignos de uma piedade cristã adulta e sadia, um facto, que ao desconsiderá-los aos olhos do mundo, faz que este não os tome a sério.

O amor não conhece limites


Já no limite das minhas forças, pensei que a minha viagem chegara ao fim. Pensei que o caminho à minha frente se fechara, que as minhas provisões se tinham esgotado e que chegara o momento de procurar um abrigo no silêncio da escuridão. Vejo, porém, que a tua vontade em mim não conhece limites. E, quando as velhas palavras saem mortas da minha língua, novas melodias brotam do meu coração. Quando as velhas trilhas se perdem, revela-se então um novo país, com todas as suas maravilhas.
Rabindranath Tagore
in, Gitanjali (Oferenda Lírica)

Este trecho é um hino de amor.
Dos mais belos – atrevo-me a dizer -  que o espírito humano produziu.
Começa com uma pungente confissão de fracasso humano, expondo-se  a alma vencida e dizendo a todos a frase em que, estando já  perdido o amor-próprio, se tinham baixado os braços e depositado no chão do abandono a vontade de viver: Já no limite das minhas forças, pensei que a minha viagem chegara ao fim, porque o homem vencido olhava em frente e, apenas, via barreiras, como se todos os caminhos estivessem fechados.
Depois, a confissão, diz o resto: sem provisões, isto é, sem se ter no arsenal da braveza humana capacidades de o prover de novas forças, restava, apenas, o abrigo final, no silêncio da escuridão.
Houve, porém, um anjo que esteve atento àquela tremenda desilusão humana, agindo no momento exacto e ao dar-lhe o braço amigo e uma nova coragem, recebe como sinal e em paga de tanto amor recebido, a frase cheia de um encanto sem medida: Vejo, porém, que a tua vontade em mim não conhece limites.
Diz Albert Camus, que  não ser amado é falta de sorte, mas não amar é cavar a própria infelicidade, o que não deve acontecer, porque se o homem da mó de baixo teve falta de sorte, se for amado, sente  em si mesmo a volta da dignidade transcendente e reaprende o modo como é possível nascer de novo, e a vontade de erguer o homem caído não pode conhecer limites.
Só assim,  aquele que ama é feliz, porque constrói e cultiva relações fraternas assentes na prática da justiça, sentindo que só o amor é capaz de transformar as relações altruístas que os seres humanos estabelecem entre si, como conduta que não só os aproxima entre eles, como de Deus.
O que não acontece com aquele que não ama.
Quem assim procede cava a própria infelicidade, algo que constitui a partir de Tagore uma vibrante chamada ao homem desatento, na expectativa de moldar o que nele está precisado de renovação, atendendo à necessidade de inverter comportamentos, pensando nas palavras do poeta que afirma convictamente: quando as velhas palavras saem mortas, grande é a felicidade quando elas ganham nova vida ao som das novas melodias, e estas, sabemo-lo, estão sempre ao alcance de todos aqueles que se dispõem a amar o outro.
É neste passo importante das relações humanas que o homem ganha, verdadeiramente, o lugar que por direito lhe pertence, pois, o que seria de nós sem termos amor para dar, sem termos esse sentimento  que infunde nas pessoas esperança e alegria?
A actividade humana é chamada através do amor à transformação do Universo, fazendo vir acima as perfeições humanas que têm em Jesus o seu modelo mais perfeito, no pressuposto que os homens não são um amontoado sem ordem, mas uma concertação humana onde Deus vive eternamente, na certeza que no sacrifício da Cruz todas as barreiras humanas já foram derrubadas.
Em face disto, de nada aproveita ao homem, viver, criando novas barreiras ao outro, levando-o ao desespero e a pensar – como diz o poeta - Pensei que o caminho à minha frente se fechara.
Isto não pode acontecer.

Não tomes o primeiro lugar



Faz parte da sabedoria divina.
Um convite recebido é sempre uma deferência, mas pode não ser de tal monta que o convidado por muito importante que seja – ou assim se julgue – chegue ao local da festa e se sente num lugar da frente, ou seja, em lugar destacado, sem dar atenção àquele que lhe dirigiu o convite e a quem compete a distribuição dos convidados.
Conta a Escritura, que num determinado sábado, Jesus foi convidado por um dos notáveis da terra, um chefe da seita dos fariseus. Ao vê-lo, no local da festa, segundo o relato de S. Lucas (14, 1.7-14) muitos começaram a observá-lo sem suspeitarem que Ele era o observador mais atento de todos.
E o que viu?
Deu-se conta, de imediato, da forma apressada como os convidados escolhiam os primeiros lugares da mesa do repasto, sem respeito algum pelas regras de sociabilidade humana, correndo o risco de poder chegar alguém julgado mais importante pelo dono da festa e serem expulsos dos lugares abusivamente conquistados a esmo, por satisfação de vaidades mesquinhas de importâncias falaciosas, podendo até vir a ser relegados para os últimos lugares.
Tendo em conta esta possibilidade, conta S. Lucas, que num dado tempo da festa, Jesus disse: reclina-te no último lugar, para que, quando vier o que te convidou, te diga: Amigo, sobe mais para cima. Então terás honra diante de todos os que estiverem contigo à mesa. Porque todo o que a si mesmo se exaltar será humilhado, e aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado.
A sabedoria humana - a roçar o divino - está aqui à vista de todos os que a queiram entender.
Não disputemos, pois, os lugares de destaque, nem aspiremos a ser dos primeiros entre os que rendem culto às fatuidades de um mundo que se compraz no cumprimento destas vaidades.
 Seja, antes, a nossa luta dirigida no sentido de eliminarmos com a nossa acção as diferenças que separam, uns dos outros, os homens, e seja o nosso ideal mais forte o empenho de aproveitarmos as muitas oportunidades que se nos apresentam, todos os dias, de termos atitudes serenas, muito ao jeito dos que fazem da vida uma conquista, não em bicos de pés, mas antes, com modo de quem vive sem atropelar direitos que podem pertencer a outros, como o facto desses outros merecerem os primeiros lugares, antes de nós.
O último lugar que pode apontar o sítio dos mais humildes, não é uma desonra, porque a humildade é uma posição interior que cada homem assume para si mesmo, não podendo  ser avaliada pela fortuna que não se tem, pois há homens ricos que se comprazem em ser humildes, passando quantas vezes despercebidos e sem alardes tontos de disputas de lugares de destaque.
É por esta e outras tantas atitudes de ordem temporal a apontar para o sagrado – um facto que nunca foi descurado por Jesus – que a figura ímpar do galileu se impõe a um mundo onde imergem homens como o brilhante militar de Saint-Cyr que serviu na Argélia e, depois, foi o padre Charles de Foucauld, (1858-1916) que um dia afirmou: Eu tenho uma repugnância extrema por tudo o que me levaria a me distanciar deste último lugar, afirmando isto quando vivia isolado, entre os tuaregues da região do Sahara.
Ele que era o primeiro sentia-se feliz em ser o último daquela tribo do deserto.

Fazer as pequenas grandes coisas


Todos temos ao nosso alcance o meio mais simples de nos santificarmos: Santificação na vida diária, no pormenor trivial. Se esperas fazer um dia grandes coisas para te santificares, jamais o conseguirás. Digo-o com o Evangelho na mão, contemplando como brilham os olhos de Deus ao ver a generosidade daquela pobre viúva que deixa no Templo o que tem, tudo quanto possui: duas pequenas moedas. É isto o que faz exclamar o Senhor: “Eu vos asseguro que esta pobre viúva deu mais do que ninguém”
Jesus Urtega
in, O Valor Divino do Humano


Deus está atento mais aos pormenores que preenchem o dia do que à notícia de arromba, anunciadora de grandes feitos que se procuram com afã, mas nem sempre ou nunca acontecem.
Há dias, tomei conhecimento deste singular pedido: (…)  preciso de sugestões criativas de pequenas coisas que  podemos fazer para salvar o mundo, qualquer coisa vale: poemas, frases, textos, músicas, mensagens. (…) e, acrescento, a estas pequenas coisas – mas tão importantes – outras, como: dar a mão aberta num cumprimento franco, dar um aceno de simpatia, dar um sorriso, ou perguntar, - “com estás?” ou  “como tens passado?” -  mas que sejam interrogações saídas do coração e não obediências a rituais mecânicos vazios de conteúdo humano.
Os pequenos nadas que fazemos com amor, como estes exemplos ou outros, é que são verdadeiramente valiosos – coisas grandes na pequenez da dádiva – mas assim entendidas por Deus, para quem, as coisas não valem pela sua grandeza física ou pelo seu valor material, mas pelo amor com que as fazemos.
Há no Evangelho, testemunhos espantosos de pequenos nadas como é o caso acontecido em Sarepta, localidade onde vivia uma pobre viúva que por ordem de Deus devia alimentar Elias, mas  paupérrima que era só tinha um naco de farinha, o que foi bastante para satisfazer na sua pobreza o amor que sentia pelo homem de Deus.
Amassando-a zelosamente é com ela que coze um pão para o profeta.
Porém, o caso mais conhecido e, igualmente, espantoso é o acontecido com a chamada “viúva do Evangelho” que deixa no Templo o que tem, tudo quanto possui: duas pequenas moedas.
Duas pequena migalhas que encheram o cofre de Deus.
Não andemos, pois, a procurar acontecimentos que encham de notícias as primeiras páginas dos jornais ou abram os noticiários da rádio ou da televisão.
São espalhafatos para o mundo ver. Deus não os enxerga. Mas vê os pequenos nadas: aquilo que parece insignificante e fazemos todos os dias, gotas pequenas que vão enchendo o oceano da vida.
Os tais pormenores de que já se falou, na certeza que é através deles que se consegue pôr a flutuar em cima do oceano construído o barco que o homem é, e a singrar na rota concertada que o ponha a salvo, num dia que só Deus sabe, no porto que lhe está destinado.
E só se chega lá pelos pequenos nadas que damos, se atentarmos no modo como Deus apreciou  as duas moedas da viúva.
Eram a sua riqueza material, espelhos da sua riqueza interior.
Tão grandes que eram chegaram até nós, neste tempo mesquinho das grandes coisas e dos grandes projectos, mas onde Deus, em cada dia, continua a ser o Grande Ausente por causa dos sonhos desmedidos dos homens que não lhes deixam espaço para pensarem nos pequenos nadas de que se enchem os grandes destinos.

Deus: uma procura do homem



Deus não é uma invenção, uma criação do espírito humano; é um encontro, uma descoberta deste. O homem não criou o divino, encontrou-o, sendo fiel aos apelos mais íntimos do seu ser. (…) A nossa existência pende para Ele, sem que nós possamos impedir-nos de O invocar, seja qual for o nome que nos venha aos lábios. (…)
Deus não se vê, não se sente; Deus procura-se. E o homem há-de procurá-Lo em todas as idades da vida, por todas as vias da sua consciência.
J. Paulo Nunes
in, Cristo ou Marx?

Há, no nosso tempo, uma dura realidade, que leva o homem mais fiel ao credo doutrinal de Jesus, por força dos acontecimentos descristianizados que o cercam no quotidiano fratricida que a todos atinge, a não resistir devidamente, metido como está – por força da sua acção vivencial - na máquina avassaladora de um tempo de magros ideais evangélicos, mas assumindo, ainda assim, um grau de nefastas ocorrências para as almas espiritualizadas.
Em casos extremos assistimos, até, à subversão das consciências, quando o demónio, esvaziando-as de valores sãos, tenta que os homens se tornem ausentes das coisas sagradas, para as quais, no entanto, pende a sua natureza.
Mas, esvaídos de Deus, sem desejo de O encontrar, cheios da sua própria eternidade, esquecidos de se ajoelharem perante o Infinito, os homens actuais, em grandes estratos da sociedade, elevados pela sua inteligência estão a cometer o pecado de um endeusamento, contra o qual é preciso pugnar.
Carregados de matéria, devem uma prova às certezas que afirmam ter e essa prova não pode deixar de ser o facto de não acharem na vida presente uma presunção da futura, mas uma certeza disso mesmo, porquanto a imortalidade da alma é um prolongamento e não o rompimento do ser interior onde vive a memória, que é, pela sua natureza o embrião da parte divina que em nós vive em cada dia e  em cada hora, com as nossas obras meritórias, que um decreto divino por via da assunção dessas virtudes faz de cada um de nós o criador da sua própria imortalidade.
O homem não criou o divino, encontrou-o, porquanto o sentimento da religiosidade nasce com a criatura, constituindo sempre por ordem natural a reacção da virtude contra o crime, enquanto um trabalho da consciência contra o mal, assumindo-se como um fogo purificador que guerreia o pecado.
Em suma, dir-se-á que o fundamento antropológico da religiosidade natural, no âmbito social,  age no homem como um anjo fiel aos apelos mais íntimos do seu ser, no vasto campo das relações íntimas entre a natureza e a graça, constituindo-se como uma propriedade originária do homem, que deve merecer deste todo o carinho, quanto à sua conservação, nobilitação e transmissão intacta dos valores herdados no acto do seu nascimento.
É um dever que nos cabe.
Razão, porque, não se pode consentir a continuada inversão de valores a que vamos assistindo no mundo moderno que traz alapado o sucesso como uma conquista material do homem bem sucedido na vida, aliando-se isto a um sentido de riqueza ou de poder – o que não seria em si mesmo um mal – se estes factos não trouxessem a desvinculação de escolhas morais, como não raro, acontece.
Deus, é verdade, não se vê.
Mas é Ele o Agente Eterno que o homem tem o dever de procurar em todas as idades da vida, por todas as vias da sua consciência, pois só desse modo se cumpre a plenitude da alma humana que pende para Ele, sem que nós possamos impedir-nos de O invocar, seja qual for o nome que nos venha aos lábios, cumprindo o dever de não deixar perdida na lama do caminho a Sua Palavra imortal.

Cristo não é exclusivo de ninguém!




De tanto escrever e repetir a expressão “O Meu Cristo Partido”, o possessivo “meu” tinha lançado raízes no mais recôndito do meu ser, criando em mim, consciente e inconscientemente, um sentimento inalienável e um direito incontroverso de absoluta posse sobre o Meu Cristo Partido.
Não tinha sido eu a encontrá-lo? Não o tinha comprado com o meu dinheiro? (…)
Logo o Cristo era meu. Só e exclusivamente meu.
E como o tesouro mais valioso da minha existência o conservava eu no meu escritório, sempre fechado à chave.
Ramón Cué
in, O Meu Cristo Partido de Casa em Casa

Para o mais desprevenido, parece que o título do livro O Meu Cristo Partido de Casa em Casa, gera alguma contradição com o pequeno excerto, onde o autor ao reclamar para si o direito incontroverso  de absoluta posse da escultura mutilada de Cristo, não deixaria margem de um qualquer movimento para que a pequena escultura,  pudesse andar de casa em casa a dar-se a todos os que o quisessem receber.
Tudo está correcto, porém.
Ramón Cué ao encontrar aquele Cristo partido, sem um braço e uma perna,  numa “feira da ladra” de Sevilha, avaramente o descreve com um possessivo “meu”, a ponto de o fechar à chave e com o desejo confessado de o não emprestar a quem quer que fosse.
Tem este livro a particularidade do narrador entrar em diálogo com Cristo, numa linguagem entre a mundana deste e a missionária do Mestre.
Sobre este assunto e num livro anterior, o autor, num diálogo travado com o vendedor da feira de Sevilha, soube deste que a escultura teria vindo das montanhas de Aracena e as mutilações se deviam a profanações da guerra, mas que as poderia remediar junto de um restaurador seu vizinho, o que mereceu, de imediato, uma recusa pertinente de Cristo e ser assim colocado no seu escritório.
Estupefacto, perante aquela atitude, tenta retorquir-lhe: Mas, vê-lo assim é para mim uma dor contínua, tendo obtido com resposta, entre outras, as seguintes inquietações evangélicas de Cristo: Não me restabeleça (…) Vendo-me assim, quero servir de chave para a dor humana. (…)
Divinamente, é posto o dedo na ferida.
Cristo é um Mestre.
Efectivamente, de que serve uma devoção que tranquiliza as consciências, tendo um Cristo bonito, se nos esquecemos dos que sofrem e dos que tendo braços, não os têm para trabalhar, porque não arranjam emprego?
De que serve, pois, beijar um Cristo bonito – obra de arte – se é ofendida, diariamente,  a obra de arte que é o homem, filho de Deus e irmão de Cristo, que se fez um igual a nós, excepto no pecado?
O comprador daquela escultura mutilada acabou por compreender tudo isto.
Ele., que se dizia dono: Não tinha sido ele a encontrá-lo? Não o tinha comprado com o seu dinheiro?, acabaria, depois de muitas peripécias – que tornam o livro de leitura obrigatória – por abandonar o sentido de posse e dar o seu “Cristo Partido” de oferenda aos homens, de casa em casa, formando uma vitrina onde estavam expostas lembranças de lágrimas, beijos, súplicas, carícias, abraços, queixas, suspiros (…)
E é, revendo-se, na sua atitude anterior que o autor nos diz: À beira d’Ele, já não me sinto só.
N’Ele estou unido a todos os irmãos quem como eu, o amaram e beijaram.
É esta, finalmente, a mensagem de amor humano que o autor nos quer dar.
Cristo não é exclusivo de ninguém.
Veio ao mundo para ser de todos os homens e não para ser fechado à chave.