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terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Bula do Jubileu Extraordinário da Misericórdia



Está aberta a Porta Santa na Basílica de São Pedro, em Roma. Poucos minutos depois das 10h00, Francisco transpôs a porta seguido do seu antecessor Bento XVI e depois cardeais, bispos e representantes de sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos.
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Misericordiae Vultus

BULA DE PROCLAMAÇÃO
DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA

FRANCISCO
BISPO DE ROMA
SERVO DOS SERVOS DE DEUS
A QUANTOS LEREM ESTA CARTA
GRAÇA, MISERICÓRDIA E PAZ


Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. O mistério da fé cristã parece encontrar nestas palavras a sua síntese. Tal misericórdia tornou-se viva, visível e atingiu o seu clímax em Jesus de Nazaré. O Pai, « rico em misericórdia » (Ef 2, 4), depois de ter revelado o seu nome a Moisés como « Deus misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e fidelidade » (Ex 34, 6), não cessou de dar a conhecer, de vários modos e em muitos momentos da história, a sua natureza divina. Na « plenitude do tempo » (Gl 4, 4), quando tudo estava pronto segundo o seu plano de salvação, mandou o seu Filho, nascido da Virgem Maria, para nos revelar, de modo definitivo, o seu amor. Quem O vê, vê o Pai (cf. Jo 14, 9). Com a sua palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa,[1] Jesus de Nazaré revela a misericórdia de Deus.

Precisamos sempre de contemplar o mistério da misericórdia. É fonte de alegria, serenidade e paz. É condição da nossa salvação. Misericórdia: é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia: é o acto último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado.

Há momentos em que somos chamados, de maneira ainda mais intensa, a fixar o olhar na misericórdia, para nos tornarmos nós mesmos sinal eficaz do agir do Pai. Foi por isso que proclamei um Jubileu Extraordinário da Misericórdia como tempo favorável para a Igreja, a fim de se tornar mais forte e eficaz o testemunho dos crentes.

O Ano Santo abrir-se-á no dia 8 de Dezembro de 2015, solenidade da Imaculada Conceição. Esta festa litúrgica indica o modo de agir de Deus desde os primórdios da nossa história. Depois do pecado de Adão e Eva, Deus não quis deixar a humanidade sozinha e à mercê do mal. Por isso, pensou e quis Maria santa e imaculada no amor (cf. Ef 1, 4), para que Se tornasse a Mãe do Redentor do homem. Perante a gravidade do pecado, Deus responde com a plenitude do perdão. A misericórdia será sempre maior do que qualquer pecado, e ninguém pode colocar um limite ao amor de Deus que perdoa. Na festa da Imaculada Conceição, terei a alegria de abrir a Porta Santa. Será então uma Porta da Misericórdia, onde qualquer pessoa que entre poderá experimentar o amor de Deus que consola, perdoa e dá esperança.

No domingo seguinte, o Terceiro Domingo de Advento, abrir-se-á a Porta Santa na Catedral de Roma, a Basílica de São João de Latrão. E em seguida será aberta a Porta Santa nas outras Basílicas Papais. Estabeleço que no mesmo domingo, em cada Igreja particular – na Catedral, que é a Igreja-Mãe para todos os fiéis, ou na Concatedral ou então numa Igreja de significado especial – se abra igualmente, durante todo o Ano Santo, uma Porta da Misericórdia. Por opção do Ordinário, a mesma poderá ser aberta também nos Santuários, meta de muitos peregrinos que frequentemente, nestes lugares sagrados, se sentem tocados no coração pela graça e encontram o caminho da conversão. Assim, cada Igreja particular estará directamente envolvida na vivência deste Ano Santo como um momento extraordinário de graça e renovação espiritual. Portanto o Jubileu será celebrado, quer em Roma quer nas Igrejas particulares, como sinal visível da comunhão da Igreja inteira.

Escolhi a data de 8 de Dezembro, porque é cheia de significado na história recente da Igreja. Com efeito, abrirei a Porta Santa no cinquentenário da conclusão do Concílio Ecuménico Vaticano II. A Igreja sente a necessidade de manter vivo aquele acontecimento. Começava então, para ela, um percurso novo da sua história. Os Padres, reunidos no Concílio, tinham sentido forte, como um verdadeiro sopro do Espírito, a exigência de falar de Deus aos homens do seu tempo de modo mais compreensível. Derrubadas as muralhas que, por demasiado tempo, tinham encerrado a Igreja numa cidadela privilegiada, chegara o tempo de anunciar o Evangelho de maneira nova. Uma nova etapa na evangelização de sempre. Um novo compromisso para todos os cristãos de testemunharem, com mais entusiasmo e convicção, a sua fé. A Igreja sentia a responsabilidade de ser, no mundo, o sinal vivo do amor do Pai.

Voltam à mente aquelas palavras, cheias de significado, que São João XXIII pronunciou na abertura do Concílio para indicar a senda a seguir: « Nos nossos dias, a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade. (…) A Igreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecuménico o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade com os filhos dela separados ».[2] E, no mesmo horizonte, havia de colocar-se o Beato Paulo VI, que assim falou na conclusão do Concílio: « Desejamos notar que a religião do nosso Concílio foi, antes de mais, a caridade. (...) Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio. (…) Uma corrente de interesse e admiração saiu do Concílio sobre o mundo actual. Rejeitaram-se os erros, como a própria caridade e verdade exigiam, mas os homens, salvaguardado sempre o preceito do respeito e do amor, foram apenas advertidos do erro. Assim se fez, para que, em vez de diagnósticos desalentadores, se dessem remédios cheios de esperança; para que o Concílio falasse ao mundo actual não com presságios funestos mas com mensagens de esperança e palavras de confiança. Não só respeitou mas também honrou os valores humanos, apoiou todas as suas iniciativas e, depois de os purificar, aprovou todos os seus esforços. (…) Uma outra coisa, julgamos digna de consideração. Toda esta riqueza doutrinal orienta-se apenas a isto: servir o homem, em todas as circunstâncias da sua vida, em todas as suas fraquezas, em todas as suas necessidades ».[3]

Com estes sentimentos de gratidão pelo que a Igreja recebeu e de responsabilidade quanto à tarefa que nos espera, atravessaremos a Porta Santa com plena confiança de ser acompanhados pela força do Senhor Ressuscitado, que continua a sustentar a nossa peregrinação. O Espírito Santo, que conduz os passos dos crentes de forma a cooperarem para a obra de salvação realizada por Cristo, seja guia e apoio do povo de Deus a fim de o ajudar a contemplar o rosto da misericórdia.[4]

O Ano Jubilar terminará na solenidade litúrgica de Jesus Cristo, Rei do Universo, 20 de Novembro de 2016. Naquele dia, ao fechar a Porta Santa, animar-nos-ão, antes de tudo, sentimentos de gratidão e agradecimento à Santíssima Trindade por nos ter concedido este tempo extraordinário de graça. Confiaremos a vida da Igreja, a humanidade inteira e o universo imenso à Realeza de Cristo, para que derrame a sua misericórdia, como o orvalho da manhã, para a construção duma história fecunda com o compromisso de todos no futuro próximo. Quanto desejo que os anos futuros sejam permeados de misericórdia para ir ao encontro de todas as pessoas levando-lhes a bondade e a ternura de Deus! A todos, crentes e afastados, possa chegar o bálsamo da misericórdia como sinal do Reino de Deus já presente no meio de nós.

« É próprio de Deus usar de misericórdia e, nisto, se manifesta de modo especial a sua omnipotência ».[5] Estas palavras de São Tomás de Aquino mostram como a misericórdia divina não seja, de modo algum, um sinal de fraqueza, mas antes a qualidade da omnipotência de Deus. É por isso que a liturgia, numa das suas colectas mais antigas, convida a rezar assim: « Senhor, que dais a maior prova do vosso poder quando perdoais e Vos compadeceis… »[6] Deus permanecerá para sempre na história da humanidade como Aquele que está presente, Aquele que é próximo, providente, santo e misericordioso.

« Paciente e misericordioso » é o binómio que aparece, frequentemente, no Antigo Testamento para descrever a natureza de Deus. O facto de Ele ser misericordioso encontra um reflexo concreto em muitas acções da história da salvação, onde a sua bondade prevalece sobre o castigo e a destruição. Os Salmos, em particular, fazem sobressair esta grandeza do agir divino: « É Ele quem perdoa as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades. É Ele quem resgata a tua vida do túmulo e te enche de graça e ternura » (103/102, 3-4). E outro Salmo atesta, de forma ainda mais explícita, os sinais concretos da misericórdia: « O Senhor liberta os prisioneiros. O Senhor dá vista aos cegos, o Senhor levanta os abatidos, o Senhor ama o homem justo. O Senhor protege os que vivem em terra estranha e ampara o órfão e a viúva, mas entrava o caminho aos pecadores » (146/145, 7-9). E, para terminar, aqui estão outras expressões do Salmista: « [O Senhor] cura os de coração atribulado e trata-lhes as feridas. (...) O Senhor ampara os humildes, mas abate os malfeitores até ao chão » (147/146, 3.6). Em suma, a misericórdia de Deus não é uma ideia abstracta mas uma realidade concreta, pela qual Ele revela o seu amor como o de um pai e de uma mãe que se comovem pelo próprio filho até ao mais íntimo das suas vísceras. É verdadeiramente caso para dizer que se trata de um amor « visceral ». Provém do íntimo como um sentimento profundo, natural, feito de ternura e compaixão, de indulgência e perdão.

« Eterna é a sua misericórdia »: tal é o refrão que aparece em cada versículo do Salmo 136, ao mesmo tempo que se narra a história da revelação de Deus. Em virtude da misericórdia, todos os acontecimentos do Antigo Testamento aparecem cheios dum valor salvífico profundo. A misericórdia torna a história de Deus com Israel uma história da salvação. O facto de repetir continuamente « eterna é a sua misericórdia », como faz o Salmo, parece querer romper o círculo do espaço e do tempo para inserir tudo no mistério eterno do amor. É como se se quisesse dizer que o homem, não só na história mas também pela eternidade, estará sempre sob o olhar misericordioso do Pai. Não é por acaso que o povo de Israel tenha querido inserir este Salmo – o « grande hallel », como lhe chamam – nas festas litúrgicas mais importantes.

Antes da Paixão, Jesus rezou ao Pai com este Salmo da misericórdia. Assim o atesta o evangelista Mateus quando afirma que « depois de cantarem os salmos » (26, 30), Jesus e os discípulos saíram para o Monte das Oliveiras. Enquanto instituía a Eucaristia, como memorial perpétuo d’Ele e da sua Páscoa, Jesus colocava simbolicamente este acto supremo da Revelação sob a luz da misericórdia. No mesmo horizonte da misericórdia, viveu Ele a sua paixão e morte, ciente do grande mistério de amor que se realizaria na cruz. O facto de saber que o próprio Jesus rezou com este Salmo torna-o, para nós cristãos, ainda mais importante e compromete-nos a assumir o refrão na nossa oração de louvor diária: « eterna é a sua misericórdia ».

Com o olhar fixo em Jesus e no seu rosto misericordioso, podemos individuar o amor da Santíssima Trindade. A missão, que Jesus recebeu do Pai, foi a de revelar o mistério do amor divino na sua plenitude. « Deus é amor » (1 Jo 4, 8.16): afirma-o, pela primeira e única vez em toda a Escritura, o evangelista João. Agora este amor tornou-se visível e palpável em toda a vida de Jesus. A sua pessoa não é senão amor, um amor que se dá gratuitamente. O seu relacionamento com as pessoas, que se abeiram d’Ele, manifesta algo de único e irrepetível. Os sinais que realiza, sobretudo para com os pecadores, as pessoas pobres, marginalizadas, doentes e atribuladas, decorrem sob o signo da misericórdia. Tudo n’Ele fala de misericórdia. N’Ele, nada há que seja desprovido de compaixão.

Vendo que a multidão de pessoas que O seguia estava cansada e abatida, Jesus sentiu, no fundo do coração, uma intensa compaixão por elas (cf. Mt 9, 36). Em virtude deste amor compassivo, curou os doentes que Lhe foram apresentados (cf. Mt 14, 14) e, com poucos pães e peixes, saciou grandes multidões (cf. Mt 15, 37). Em todas as circunstâncias, o que movia Jesus era apenas a misericórdia, com a qual lia no coração dos seus interlocutores e dava resposta às necessidades mais autênticas que tinham. Quando encontrou a viúva de Naim que levava o seu único filho a sepultar, sentiu grande compaixão pela dor imensa daquela mãe em lágrimas e entregou-lhe de novo o filho, ressuscitando-o da morte (cf. Lc 7, 15). Depois de ter libertado o endemoninhado de Gerasa, confia-lhe esta missão: « Conta tudo o que o Senhor fez por ti e como teve misericórdia de ti » (Mc 5, 19). A própria vocação de Mateus se insere no horizonte da misericórdia. Ao passar diante do posto de cobrança dos impostos, os olhos de Jesus fixaram-se nos de Mateus. Era um olhar cheio de misericórdia que perdoava os pecados daquele homem e, vencendo as resistências dos outros discípulos, escolheu-o, a ele pecador e publicano, para se tornar um dos Doze. São Beda o Venerável, ao comentar esta cena do Evangelho, escreveu que Jesus olhou Mateus com amor misericordioso e escolheu-o: miserando atque eligendo.[7] Sempre me causou impressão esta frase, a ponto de a tomar para meu lema.

Nas parábolas dedicadas à misericórdia, Jesus revela a natureza de Deus como a dum Pai que nunca se dá por vencido enquanto não tiver dissolvido o pecado e superada a recusa com a compaixão e a misericórdia. Conhecemos estas parábolas, três em especial: as da ovelha extraviada e da moeda perdida, e a do pai com os seus dois filhos (cf. Lc 15, 1-32). Nestas parábolas, Deus é apresentado sempre cheio de alegria, sobretudo quando perdoa. Nelas, encontramos o núcleo do Evangelho e da nossa fé, porque a misericórdia é apresentada como a força que tudo vence, enche o coração de amor e consola com o perdão.

Temos depois outra parábola da qual tiramos uma lição para o nosso estilo de vida cristã. Interpelado pela pergunta de Pedro sobre quantas vezes fosse necessário perdoar, Jesus respondeu: « Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete » (Mt 18, 22) e contou a parábola do « servo sem compaixão ». Este, convidado pelo senhor a devolver uma grande quantia, suplica-lhe de joelhos e o senhor perdoa-lhe a dívida. Mas, imediatamente depois, encontra outro servo como ele, que lhe devia poucos centésimos; este suplica-lhe de joelhos que tenha piedade, mas aquele recusa-se e fá-lo meter na prisão. Então o senhor, tendo sabido do facto, zanga-se muito e, convocando aquele servo, diz-lhe: « Não devias também ter piedade do teu companheiro, como eu tive de ti? » (Mt 18, 33). E Jesus concluiu: « Assim procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar ao seu irmão do íntimo do coração » (Mt 18, 35).

A parábola contém um ensinamento profundo para cada um de nós. Jesus declara que a misericórdia não é apenas o agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus verdadeiros filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia, porque, primeiro, foi usada misericórdia para connosco. O perdão das ofensas torna-se a expressão mais evidente do amor misericordioso e, para nós cristãos, é um imperativo de que não podemos prescindir. Tantas vezes, como parece difícil perdoar! E, no entanto, o perdão é o instrumento colocado nas nossas frágeis mãos para alcançar a serenidade do coração. Deixar de lado o ressentimento, a raiva, a violência e a vingança são condições necessárias para se viver feliz. Acolhamos, pois, a exortação do Apóstolo: « Que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento » (Ef 4, 26). E sobretudo escutemos a palavra de Jesus que colocou a misericórdia como um ideal de vida e como critério de credibilidade para a nossa fé: « Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia » (Mt 5, 7) é a bem-aventurança a que devemos inspirar-nos, com particular empenho, neste Ano Santo.

Na Sagrada Escritura, como se vê, a misericórdia é a palavra-chave para indicar o agir de Deus para connosco. Ele não Se limita a afirmar o seu amor, mas torna-o visível e palpável. Aliás, o amor nunca poderia ser uma palavra abstracta. Por sua própria natureza, é vida concreta: intenções, atitudes, comportamentos que se verificam na actividade de todos os dias. A misericórdia de Deus é a sua responsabilidade por nós. Ele sente-Se responsável, isto é, deseja o nosso bem e quer ver-nos felizes, cheios de alegria e serenos. E, em sintonia com isto, se deve orientar o amor misericordioso dos cristãos. Tal como ama o Pai, assim também amam os filhos. Tal como Ele é misericordioso, assim somos chamados também nós a ser misericordiosos uns para com os outros.

A arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua acção pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo. A Igreja « vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia ».[8] Talvez, demasiado tempo, nos tenhamos esquecido de apontar e viver o caminho da misericórdia. Por um lado, atentação de pretender sempre e só a justiça fez esquecer que esta é apenas o primeiro passo, necessário e indispensável, mas a Igreja precisa de ir mais além a fim de alcançar uma meta mais alta e significativa. Por outro lado, é triste ver como a experiência do perdão na nossa cultura vai rareando cada vez mais. Em certos momentos, até a própria palavra parece desaparecer. Todavia, sem o testemunho do perdão, resta apenas uma vida infecunda e estéril, como se se vivesse num deserto desolador. Chegou de novo, para a Igreja, o tempo de assumir o anúncio jubiloso do perdão. É o tempo de regresso ao essencial, para cuidar das fraquezas e dificuldades dos nossos irmãos. O perdão é uma força que ressuscita para nova vida e infunde a coragem para olhar o futuro com esperança.

Não podemos esquecer o grande ensinamento que ofereceu São João Paulo II com a sua segunda encíclica, a Dives in misericordia, que então surgiu inesperada suscitando a surpresa de muitos pelo tema que era abordado. Desejo recordar especialmente dois trechos. No primeiro deles, o Santo Papa assinalava o esquecimento em que caíra o tema da misericórdia na cultura dos nossos dias: « A mentalidade contemporânea, talvez mais que a do homem do passado, parece opor-se ao Deus de misericórdia e, além disso, tende a separar da vida e a tirar do coração humano a própria ideia da misericórdia. A palavra e o conceito de misericórdia parecem causar mal-estar ao homem, o qual, graças ao enorme desenvolvimento da ciência e da técnica nunca antes verificado na história, se tornou senhor da terra, a subjugou e a dominou (cf. Gn 1, 28). Um tal domínio sobre a terra, entendido por vezes unilateral e superficialmente, parece não deixar espaço para a misericórdia. (...) Por esse motivo, na hodierna situação da Igreja e do mundo, muitos homens e muitos ambientes guiados por um vivo sentido de fé, voltam-se quase espontaneamente, por assim dizer, para a misericórdia de Deus ».[9]

Além disso, São João Paulo II motivava assim a urgência de anunciar e testemunhar a misericórdia no mundo contemporâneo: « Ela é ditada pelo amor para com o homem, para com tudo o que é humano e que, segundo a intuição de grande parte dos contemporâneos, está ameaçado por um perigo imenso. O próprio mistério de Cristo (...) obriga-me igualmente a proclamar a misericórdia como amor misericordioso de Deus, revelada também no mistério de Cristo. Ele me impele ainda a apelar para esta misericórdia e a implorá-la nesta fase difícil e crítica da história da Igreja e do mundo ».[10] Tal ensinamento é hoje mais actual do que nunca e merece ser retomado neste Ano Santo. Acolhamos novamente as suas palavras: « A Igreja vive uma vida autêntica quando professa e proclama a misericórdia, o mais admirável atributo do Criador e do Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da misericórdia do Salvador, das quais ela é depositária e dispensadora ».[11]

A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém. No nosso tempo, em que a Igreja está comprometida na nova evangelização, o tema da misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmo e uma acção pastoral renovada. É determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia. A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressar ao Pai, devem irradiar misericórdia.

A primeira verdade da Igreja é o amor de Cristo. E, deste amor que vai até ao perdão e ao dom de si mesmo, a Igreja faz-se serva e mediadora junto dos homens. Por isso, onde a Igreja estiver presente, aí deve ser evidente a misericórdia do Pai. Nas nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde houver cristãos –, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia.

Queremos viver este Ano Jubilar à luz desta palavra do Senhor: Misericordiosos como o Pai. O evangelista refere o ensinamento de Jesus, que diz: « Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso » (Lc 6, 36). É um programa de vida tão empenhativo como rico de alegria e paz. O imperativo de Jesus é dirigido a quantos ouvem a sua voz (cf. Lc 6, 27). Portanto, para ser capazes de misericórdia, devemos primeiro pôr-nos à escuta da Palavra de Deus. Isso significa recuperar o valor do silêncio, para meditar a Palavra que nos é dirigida. Deste modo, é possível contemplar a misericórdia de Deus e assumi-la como próprio estilo de vida.

A peregrinação é um sinal peculiar no Ano Santo, enquanto ícone do caminho que cada pessoa realiza na sua existência. A vida é uma peregrinação e o ser humano é viator, um peregrino que percorre uma estrada até à meta anelada. Também para chegar à Porta Santa, tanto em Roma como em cada um dos outros lugares, cada pessoa deverá fazer, segundo as próprias forças, uma peregrinação. Esta será sinal de que a própria misericórdia é uma meta a alcançar que exige empenho e sacrifício. Por isso, a peregrinação há-de servir de estímulo à conversão: ao atravessar a Porta Santa, deixar-nos-emos abraçar pela misericórdia de Deus e comprometer-nos-emos a ser misericordiosos com os outros como o Pai o é connosco.

O Senhor Jesus indica as etapas da peregrinação através das quais é possível atingir esta meta: « Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado: uma boa medida, cheia, recalcada, transbordante será lançada no vosso regaço. A medida que usardes com os outros será usada convosco » (Lc 6, 37-38). Ele começa por dizer para não julgar nem condenar. Se uma pessoa não quer incorrer no juízo de Deus, não pode tornar-se juiz do seu irmão. É que os homens, no seu juízo, limitam-se a ler a superfície, enquanto o Pai vê o íntimo. Que grande mal fazem as palavras, quando são movidas por sentimentos de ciúme e inveja! Falar mal do irmão, na sua ausência, equivale a deixá-lo mal visto, a comprometer a sua reputação e deixá-lo à mercê das murmurações. Não julgar nem condenar significa, positivamente, saber individuar o que há de bom em cada pessoa e não permitir que venha a sofrer pelo nosso juízo parcial e a nossa pretensão de saber tudo. Mas isto ainda não é suficiente para se exprimir a misericórdia. Jesus pede também para perdoar e dar. Ser instrumentos do perdão, porque primeiro o obtivemos nós de Deus. Ser generosos para com todos, sabendo que também Deus derrama a sua benevolência sobre nós com grande magnanimidade.

Misericordiosos como o Pai é, pois, o « lema » do Ano Santo. Na misericórdia, temos a prova de como Deus ama. Ele dá tudo de Si mesmo, para sempre, gratuitamente e sem pedir nada em troca. Vem em nosso auxílio, quando O invocamos. É significativo que a oração diária da Igreja comece com estas palavras: « Deus, vinde em nosso auxílio! Senhor, socorrei-nos e salvai-nos » (Sal 70/69, 2). O auxílio que invocamos é já o primeiro passo da misericórdia de Deus para connosco. Ele vem para nos salvar da condição de fraqueza em que vivemos. E a ajuda d’Ele consiste em fazer-nos sentir a sua presença e proximidade. Dia após dia, tocados pela sua compaixão, podemos também nós tornar-nos compassivos para com todos.

Neste Ano Santo, poderemos fazer a experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática. Quantas situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo actual! Quantas feridas gravadas na carne de muitos que já não têm voz, porque o seu grito foi esmorecendo e se apagou por causa da indiferença dos povos ricos. Neste Jubileu, a Igreja sentir-se-á chamada ainda mais a cuidar destas feridas, aliviá-las com o óleo da consolação, enfaixá-las com a misericórdia e tratá-las com a solidariedade e a atenção devidas. Não nos deixemos cair na indiferença que humilha, na habituação que anestesia o espírito e impede de descobrir a novidade, no cinismo que destrói. Abramos os nossos olhos para ver as misérias do mundo, as feridas de tantos irmãos e irmãs privados da própria dignidade e sintamo-nos desafiados a escutar o seu grito de ajuda. As nossas mãos apertem as suas mãos e estreitemo-los a nós para que sintam o calor da nossa presença, da amizade e da fraternidade. Que o seu grito se torne o nosso e, juntos, possamos romper a barreira de indiferença que frequentemente reina soberana para esconder a hipocrisia e o egoísmo.

É meu vivo desejo que o povo cristão reflicta, durante o Jubileu, sobre as obras de misericórdia corporal e espiritual. Será uma maneira de acordar a nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são os privilegiados da misericórdia divina. A pregação de Jesus apresenta-nos estas obras de misericórdia, para podermos perceber se vivemos ou não como seus discípulos. Redescubramos as obras de misericórdia corporal: dar de comer aos famintos, dar de beber aos sedentos, vestir os nus, acolher os peregrinos, dar assistência aos enfermos, visitar os presos, enterrar os mortos. E não esqueçamos as obras de misericórdia espiritual: aconselhar os indecisos, ensinar os ignorantes, admoestar os pecadores, consolar os aflitos, perdoar as ofensas, suportar com paciência as pessoas molestas, rezar a Deus pelos vivos e defuntos.

Não podemos escapar às palavras do Senhor, com base nas quais seremos julgados: se demos de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede; se acolhemos o estrangeiro e vestimos quem está nu; se reservamos tempo para visitar quem está doente e preso (cf. Mt 25, 31-45). De igual modo ser-nos-á perguntado se ajudamos a tirar da dúvida, que faz cair no medo e muitas vezes é fonte de solidão; se fomos capazes de vencer a ignorância em que vivem milhões de pessoas, sobretudo as crianças desprovidas da ajuda necessária para se resgatarem da pobreza; se nos detivemos junto de quem está sozinho e aflito; se perdoamos a quem nos ofende e rejeitamos todas as formas de ressentimento e ódio que levam à violência; se tivemos paciência, a exemplo de Deus que é tão paciente connosco; enfim se, na oração, confiamos ao Senhor os nossos irmãos e irmãs. Em cada um destes « mais pequeninos », está presente o próprio Cristo. A sua carne torna-se de novo visível como corpo martirizado, chagado, flagelado, desnutrido, em fuga ... a fim de ser reconhecido, tocado e assistido cuidadosamente por nós. Não esqueçamos as palavras de São João da Cruz: « Ao entardecer desta vida, examinar-nos-ão no amor ».[12]

No Evangelho de Lucas, encontramos outro aspecto importante para viver, com fé, o Jubileu. Conta o evangelista que Jesus voltou a Nazaré e ao sábado, como era seu costume, entrou na sinagoga. Chamaram-No para ler a Escritura e comentá-la. A passagem era aquela do profeta Isaías onde está escrito: « O espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu: enviou-me para levar a boa-nova aos que sofrem, para curar os desesperados, para anunciar a libertação aos exilados e a liberdade aos prisioneiros; para proclamar um ano de misericórdia do Senhor » (61,1-2). « Um ano de misericórdia »: isto é o que o Senhor anuncia e que nós desejamos viver. Este Ano Santo traz consigo a riqueza da missão de Jesus que ressoa nas palavras do Profeta: levar uma palavra e um gesto de consolação aos pobres, anunciar a libertação a quantos são prisioneiros das novas escravidões da sociedade contemporânea, devolver a vista a quem já não consegue ver porque vive curvado sobre si mesmo, e restituir dignidade àqueles que dela se viram privados. A pregação de Jesus torna-se novamente visível nas respostas de fé que o testemunho dos cristãos é chamado a dar. Acompanhem-nos as palavras do Apóstolo: « Quem pratica a misericórdia, faça-o com alegria » (Rm 12, 8).

A Quaresma deste Ano Jubilar seja vivida mais intensamente como tempo forte para celebrar e experimentar a misericórdia de Deus. Quantas páginas da Sagrada Escritura se podem meditar, nas semanas da Quaresma, para redescobrir o rosto misericordioso do Pai! Com as palavras do profeta Miqueias, podemos também nós repetir: Vós, Senhor, sois um Deus que tira a iniquidade e perdoa o pecado, que não Se obstina na ira mas Se compraz em usar de misericórdia. Vós, Senhor, voltareis para nós e tereis compaixão do vosso povo. Apagareis as nossas iniquidades e lançareis ao fundo do mar todos os nossos pecados (cf. 7, 18-19).

As páginas do profeta Isaías poderão ser meditadas, de forma mais concreta, neste tempo de oração, jejum e caridade. « O jejum que me agrada é este: libertar os que foram presos injustamente, livrá-los do jugo que levam às costas, pôr em liberdade os oprimidos, quebrar toda a espécie de opressão, repartir o teu pão com os esfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, atender e vestir os nus e não desprezar o teu irmão. Então, a tua luz surgirá como a aurora, e as tuas feridas não tardarão a cicatrizar-se. A tua justiça irá à tua frente, e a glória do Senhor atrás de ti. Então invocarás o Senhor e Ele te atenderá, pedirás auxílio e te dirá: “Aqui estou!” Se retirares da tua vida toda a opressão, o gesto ameaçador e o falar ofensivo, se repartires o teu pão com o faminto e matares a fome ao pobre, a tua luz brilhará na escuridão, e as tuas trevas tornar-se-ão como o meio-dia. O Senhor te guiará constantemente, saciará a tua alma no árido deserto, dará vigor aos teus ossos. Serás como um jardim bem regado, como uma fonte de águas inesgotáveis » (58, 6-11).

A iniciativa « 24 horas para o Senhor », que será celebrada na sexta-feira e no sábado anteriores ao IV Domingo da Quaresma, deve ser incrementada nas dioceses. Há muitas pessoas – e, em grande número, jovens – que estão a aproximar-se do sacramento da Reconciliação e que frequentemente, nesta experiência, reencontram o caminho para voltar ao Senhor, viver um momento de intensa oração e redescobrir o sentido da sua vida. Com convicção, ponhamos novamente no centro o sacramento da Reconciliação, porque permite tocar sensivelmente a grandeza da misericórdia. Será, para cada penitente, fonte de verdadeira paz interior.

Não me cansarei jamais de insistir com os confessores para que sejam um verdadeiro sinal da misericórdia do Pai. Ser confessor não se improvisa. Tornamo-nos tal quando começamos, nós mesmos, por nos fazer penitentes em busca do perdão. Nunca esqueçamos que ser confessor significa participar da mesma missão de Jesus e ser sinal concreto da continuidade de um amor divino que perdoa e salva. Cada um de nós recebeu o dom do Espírito Santo para o perdão dos pecados; disto somos responsáveis. Nenhum de nós é senhor do sacramento, mas apenas servo fiel do perdão de Deus. Cada confessor deverá acolher os fiéis como o pai na parábola do filho pródigo: um pai que corre ao encontro do filho, apesar de lhe ter dissipado os bens. Os confessores são chamados a estreitar a si aquele filho arrependido que volta a casa e a exprimir a alegria por o ter reencontrado. Não nos cansemos de ir também ao encontro do outro filho, que ficou fora incapaz de se alegrar, para lhe explicar que o seu juízo severo é injusto e sem sentido diante da misericórdia do Pai que não tem limites. Não hão-de fazer perguntas impertinentes, mas como o pai da parábola interromperão o discurso preparado pelo filho pródigo, porque saberão individuar, no coração de cada penitente, a invocação de ajuda e o pedido de perdão. Em suma, os confessores são chamados a ser sempre e por todo o lado, em cada situação e apesar de tudo, o sinal do primado da misericórdia.

Na Quaresma deste Ano Santo, é minha intenção enviar os Missionários da Misericórdia. Serão um sinal da solicitude materna da Igreja pelo povo de Deus, para que entre em profundidade na riqueza deste mistério tão fundamental para a fé. Serão sacerdotes a quem darei autoridade de perdoar mesmo os pecados reservados à Sé Apostólica, para que se torne evidente a amplitude do seu mandato. Serão sobretudo sinal vivo de como o Pai acolhe a todos aqueles que andam à procura do seu perdão. Serão missionários da misericórdia, porque se farão, junto de todos, artífices dum encontro cheio de humanidade, fonte de libertação, rico de responsabilidade para superar os obstáculos e retomar a vida nova do Baptismo. Na sua missão, deixar-se-ão guiar pelas palavras do Apóstolo: « Deus encerrou a todos na desobediência, para com todos usar de misericórdia » (Rm 11, 32). Na verdade todos, sem excluir ninguém, estão chamados a acolher o apelo à misericórdia. Os missionários vivam esta chamada, sabendo que podem fixar o olhar em Jesus, « Sumo Sacerdote misericordioso e fiel » (Hb 2, 17).

Peço aos irmãos bispos que convidem e acolham estes Missionários, para que sejam, antes de tudo, pregadores convincentes da misericórdia. Organizem-se, nas dioceses, « missões populares », de modo que estes Missionários sejam anunciadores da alegria do perdão. Seja-lhes pedido que celebrem o sacramento da Reconciliação para o povo, para que o tempo de graça, concedido neste Ano Jubilar, permita a tantos filhos afastados encontrar de novo o caminho para a casa paterna. Os pastores, especialmente durante o tempo forte da Quaresma, sejam solícitos em convidar os fiéis a aproximar-se « do trono da graça, a fim de alcançar misericórdia e encontrar graça » (Hb 4, 16).

Que a palavra do perdão possa chegar a todos e a chamada para experimentar a misericórdia não deixe ninguém indiferente. O meu convite à conversão dirige-se, com insistência ainda maior, àquelas pessoas que estão longe da graça de Deus pela sua conduta de vida. Penso de modo particular nos homens e mulheres que pertencem a um grupo criminoso, seja ele qual for. Para vosso bem, peço-vos que mudeis de vida. Peço-vo-lo em nome do Filho de Deus que, embora combatendo o pecado, nunca rejeitou qualquer pecador. Não caiais na terrível cilada de pensar que a vida depende do dinheiro e que, à vista dele, tudo o mais se torna desprovido de valor e dignidade. Não passa de uma ilusão. Não levamos o dinheiro connosco para o além. O dinheiro não nos dá a verdadeira felicidade. A violência usada para acumular dinheiro que transuda sangue não nos torna poderosos nem imortais. Para todos, mais cedo ou mais tarde, vem o juízo de Deus, do qual ninguém pode escapar.

O mesmo convite chegue também às pessoas fautoras ou cúmplices de corrupção. Esta praga putrefacta da sociedade é um pecado grave que brada aos céus, porque mina as próprias bases da vida pessoal e social. A corrupção impede de olhar para o futuro com esperança, porque, com a sua prepotência e avidez, destrói os projectos dos fracos e esmaga os mais pobres. É um mal que se esconde nos gestos diários para se estender depois aos escândalos públicos. A corrupção é uma contumácia no pecado, que pretende substituir Deus com a ilusão do dinheiro como forma de poder. É uma obra das trevas, alimentada pela suspeita e a intriga. Corruptio optimi pessima: dizia, com razão, São Gregório Magno, querendo indicar que ninguém pode sentir-se imune desta tentação. Para a erradicar da vida pessoal e social são necessárias prudência, vigilância, lealdade, transparência, juntamente com a coragem da denúncia. Se não se combate abertamente, mais cedo ou mais tarde torna-nos cúmplices e destrói-nos a vida.

Este é o momento favorável para mudar de vida! Este é o tempo de se deixar tocar o coração. Diante do mal cometido, mesmo crimes graves, é o momento de ouvir o pranto das pessoas inocentes espoliadas dos bens, da dignidade, dos afectos, da própria vida. Permanecer no caminho do mal é fonte apenas de ilusão e tristeza. A verdadeira vida é outra coisa. Deus não se cansa de estender a mão. Está sempre disposto a ouvir, e eu também estou, tal como os meus irmãos bispos e sacerdotes. Basta acolher o convite à conversão e submeter-se à justiça, enquanto a Igreja oferece a misericórdia.

Neste contexto, não será inútil recordar a relação entre justiça e misericórdia. Não são dois aspectos em contraste entre si, mas duas dimensões duma única realidade que se desenvolve gradualmente até atingir o seu clímax na plenitude do amor. A justiça é um conceito fundamental para a sociedade civil, normalmente quando se faz referimento a uma ordem jurídica através da qual se aplica a lei. Por justiça entende-se também que a cada um deve ser dado o que lhe é devido. Na Bíblia, alude-se muitas vezes à justiça divina, e a Deus como juiz. Habitualmente é entendida como a observância integral da Lei e o comportamento de todo o bom judeu conforme aos mandamentos dados por Deus. Esta visão, porém, levou não poucas vezes a cair no legalismo, mistificando o sentido original e obscurecendo o valor profundo que a justiça possui. Para superar a perspectiva legalista, seria preciso lembrar que, na Sagrada Escritura, a justiça é concebida essencialmente como um abandonar-se confiante à vontade de Deus.

Por sua vez, Jesus fala mais vezes da importância da fé que da observância da lei. É neste sentido que devemos compreender as suas palavras, quando, encontrando-Se à mesa com Mateus e outros publicanos e pecadores, disse aos fariseus que O acusavam por isso mesmo: « Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício. Porque Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores » (Mt 9, 13). Diante da visão duma justiça como mera observância da lei, que julga dividindo as pessoas em justos e pecadores, Jesus procura mostrar o grande dom da misericórdia que busca os pecadores para lhes oferecer o perdão e a salvação. Compreende-se que Jesus, por causa desta sua visão tão libertadora e fonte de renovação, tenha sido rejeitado pelos fariseus e os doutores da lei. Estes, para ser fiéis à lei, limitavam-se a colocar pesos sobre os ombros das pessoas, anulando porém a misericórdia do Pai. O apelo à observância da lei não pode obstaculizar a atenção às necessidades que afectam a dignidade das pessoas.

A propósito, é muito significativo o apelo que Jesus faz ao texto do profeta Oseias: « Eu quero a misericórdia e não os sacrifícios » (6, 6). Jesus afirma que, a partir de agora, a regra de vida dos seus discípulos deverá ser aquela que prevê o primado da misericórdia, como Ele mesmo dá testemunho partilhando a refeição com os pecadores. A misericórdia revela-se, mais uma vez, como dimensão fundamental da missão de Jesus. É um verdadeiro desafio posto aos seus interlocutores, que se contentavam com o respeito formal da lei. Jesus, pelo contrário, vai além da lei, a sua partilha da mesa com aqueles que a lei considerava pecadores permite compreender até onde chega a sua misericórdia.

Também o apóstolo Paulo fez um percurso semelhante. Antes de encontrar Cristo no caminho de Damasco, a sua vida era dedicada a servir de maneira irrepreensível a justiça da lei (cf. Fl 3, 6). A conversão a Cristo levou-o a inverter a sua visão, a ponto de afirmar na Carta aos Gálatas: « Também nós acreditámos em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da lei » (2, 16). A sua compreensão da justiça muda radicalmente: Paulo agora põe no primeiro lugar a fé, e já não a lei. Não é a observância da lei que salva, mas a fé em Jesus Cristo, que, pela sua morte e ressurreição, traz a salvação com a misericórdia que justifica. A justiça de Deus torna-se agora a libertação para quantos estão oprimidos pela escravidão do pecado e todas as suas consequências. A justiça de Deus é o seu perdão (cf. Sl 51/50, 11-16).

A misericórdia não é contrária à justiça, mas exprime o comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar. A experiência do profeta Oseias ajuda-nos, mostrando-nos a superação da justiça na linha da misericórdia. A época em que viveu este profeta conta-se entre as mais dramáticas da história do povo judeu. O Reino está próximo da destruição; o povo não permaneceu fiel à aliança, afastou-se de Deus e perdeu a fé dos pais. Segundo uma lógica humana, é justo que Deus pense em rejeitar o povo infiel: não observou o pacto estipulado e, consequentemente, merece a devida pena, ou seja, o exílio. Assim o atestam as palavras do profeta: « Não voltará para o Egipto, mas a Assíria será o seu rei, porque recusaram converter-se » (Os 11, 5). E todavia, depois desta reacção que faz apelo à justiça, o profeta muda radicalmente a sua linguagem e revela o verdadeiro rosto de Deus: « O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas. Não desafogarei o furor da minha cólera, não voltarei a destruir Efraim; porque sou Deus e não um homem, sou o Santo no meio de ti e não me deixo levar pela ira » (11, 8-9). Santo Agostinho, de certo modo comentando as palavras do profeta, diz: « É mais fácil que Deus contenha a ira do que a misericórdia ».[13] É mesmo assim! A ira de Deus dura um instante, ao passo que a sua misericórdia é eterna.

Se Deus Se detivesse na justiça, deixaria de ser Deus; seria como todos os homens que clamam pelo respeito da lei. A justiça por si só não é suficiente, e a experiência mostra que, limitando-se a apelar para ela, corre-se o risco de a destruir. Por isso Deus, com a misericórdia e o perdão, passa além da justiça. Isto não significa desvalorizar a justiça ou torná-la supérflua. Antes pelo contrário! Quem erra, deve descontar a pena; só que isto não é o fim, mas o início da conversão, porque se experimenta a ternura do perdão. Deus não rejeita a justiça. Ele engloba-a e supera-a num evento superior onde se experimenta o amor, que está na base duma verdadeira justiça. Devemos prestar muita atenção àquilo que escreve Paulo, para não cair no mesmo erro que o apóstolo censurava nos judeus seus contemporâneos: « Por não terem reconhecido a justiça que vem de Deus e terem procurado estabelecer a sua própria justiça, não se submeteram à justiça de Deus. É que o fim da Lei é Cristo, para que, deste modo, a justiça seja concedida a todo o que tem fé » (Rm 10, 3-4). Esta justiça de Deus é a misericórdia concedida a todos como graça, em virtude da morte e ressurreição de Jesus Cristo. Portanto a Cruz de Cristo é o juízo de Deus sobre todos nós e sobre o mundo, porque nos oferece a certeza do amor e da vida nova.

O Jubileu inclui também o referimento à indulgência. Esta, no Ano Santo da Misericórdia, adquire uma relevância particular. O perdão de Deus para os nossos pecados não conhece limites. Na morte e ressurreição de Jesus Cristo, Deus torna evidente este seu amor que chega ao ponto de destruir o pecado dos homens. É possível deixar-se reconciliar com Deus através do mistério pascal e da mediação da Igreja. Por isso, Deus está sempre disponível para o perdão, não Se cansando de o oferecer de maneira sempre nova e inesperada. No entanto todos nós fazemos experiência do pecado. Sabemos que somos chamados à perfeição (cf. Mt 5, 48), mas sentimos fortemente o peso do pecado. Ao mesmo tempo que notamos o poder da graça que nos transforma, experimentamos também a força do pecado que nos condiciona. Apesar do perdão, carregamos na nossa vida as contradições que são consequência dos nossos pecados. No sacramento da Reconciliação, Deus perdoa os pecados, que são verdadeiramente apagados; mas o cunho negativo que os pecados deixaram nos nossos comportamentos e pensamentos permanece. A misericórdia de Deus, porém, é mais forte também do que isso. Ela torna-se indulgência do Pai que, através da Esposa de Cristo, alcança o pecador perdoado e liberta-o de qualquer resíduo das consequências do pecado, habilitando-o a agir com caridade, a crescer no amor em vez de recair no pecado.

A Igreja vive a comunhão dos Santos. Na Eucaristia, esta comunhão, que é dom de Deus, realiza-se como união espiritual que nos une, a nós crentes, com os Santos e Beatos cujo número é incalculável (Ap 7, 4). A sua santidade vem em ajuda da nossa fragilidade, e assim a Mãe-Igreja, com a sua oração e a sua vida, é capaz de acudir à fraqueza de uns com a santidade de outros. Portanto viver a indulgência no Ano Santo significa aproximar-se da misericórdia do Pai, com a certeza de que o seu perdão cobre toda a vida do crente. A indulgência é experimentar a santidade da Igreja que participa em todos os benefícios da redenção de Cristo, para que o perdão se estenda até às últimas consequências aonde chega o amor de Deus. Vivamos intensamente o Jubileu, pedindo ao Pai o perdão dos pecados e a indulgência misericordiosa em toda a sua extensão.

A misericórdia possui uma valência que ultrapassa as fronteiras da Igreja. Ela relaciona-nos com o judaísmo e o islamismo, que a consideram um dos atributos mais marcantes de Deus. Israel foi o primeiro que recebeu esta revelação, permanecendo esta na história como o início duma riqueza incomensurável para oferecer à humanidade inteira. Como vimos, as páginas do Antigo Testamento estão permeadas de misericórdia, porque narram as obras que o Senhor realizou em favor do seu povo, nos momentos mais difíceis da sua história. O islamismo, por sua vez, coloca entre os nomes dados ao Criador o de Misericordioso e Clemente. Esta invocação aparece com frequência nos lábios dos fiéis muçulmanos, que se sentem acompanhados e sustentados pela misericórdia na sua fraqueza diária. Também eles acreditam que ninguém pode pôr limites à misericórdia divina, porque as suas portas estão sempre abertas.

Possa este Ano Jubilar, vivido na misericórdia, favorecer o encontro com estas religiões e com as outras nobres tradições religiosas; que ele nos torne mais abertos ao diálogo, para melhor nos conhecermos e compreendermos; elimine todas as formas de fechamento e desprezo e expulse todas as formas de violência e discriminação.

O pensamento volta-se agora para a Mãe da Misericórdia. A doçura do seu olhar nos acompanhe neste Ano Santo, para podermos todos nós redescobrir a alegria da ternura de Deus. Ninguém, como Maria, conheceu a profundidade do mistério de Deus feito homem. Na sua vida, tudo foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne. A Mãe do Crucificado Ressuscitado entrou no santuário da misericórdia divina, porque participou intimamente no mistério do seu amor.

Escolhida para ser a Mãe do Filho de Deus, Maria foi preparada desde sempre, pelo amor do Pai, para ser Arca da Aliança entre Deus e os homens. Guardou, no seu coração, a misericórdia divina em perfeita sintonia com o seu Filho Jesus. O seu cântico de louvor, no limiar da casa de Isabel, foi dedicado à misericórdia que se estende « de geração em geração » (Lc 1, 50). Também nós estávamos presentes naquelas palavras proféticas da Virgem Maria. Isto servir-nos-á de conforto e apoio no momento de atravessarmos a Porta Santa para experimentar os frutos da misericórdia divina.

Ao pé da cruz, Maria, juntamente com João, o discípulo do amor, é testemunha das palavras de perdão que saem dos lábios de Jesus. O perdão supremo oferecido a quem O crucificou, mostra-nos até onde pode chegar a misericórdia de Deus. Maria atesta que a misericórdia do Filho de Deus não conhece limites e alcança a todos, sem excluir ninguém. Dirijamos-Lhe a oração, antiga e sempre nova, da Salve Rainha, pedindo-Lhe que nunca se canse de volver para nós os seus olhos misericordiosos e nos faça dignos de contemplar o rosto da misericórdia, seu Filho Jesus.

E a nossa oração estenda-se também a tantos Santos e Beatos que fizeram da misericórdia a sua missão vital. Em particular, o pensamento volta-se para a grande apóstola da Misericórdia, Santa Faustina Kowalska. Ela, que foi chamada a entrar nas profundezas da misericórdia divina, interceda por nós e nos obtenha a graça de viver e caminhar sempre no perdão de Deus e na confiança inabalável do seu amor.

Será, portanto, um Ano Santo extraordinário para viver, na existência de cada dia, a misericórdia que o Pai, desde sempre, estende sobre nós. Neste Jubileu, deixemo-nos surpreender por Deus. Ele nunca Se cansa de escancarar a porta do seu coração, para repetir que nos ama e deseja partilhar connosco a sua vida. A Igreja sente, fortemente, a urgência de anunciar a misericórdia de Deus. A sua vida é autêntica e credível, quando faz da misericórdia seu convicto anúncio. Sabe que a sua missão primeira, sobretudo numa época como a nossa cheia de grandes esperanças e fortes contradições, é a de introduzir a todos no grande mistério da misericórdia de Deus, contemplando o rosto de Cristo. A Igreja é chamada, em primeiro lugar, a ser verdadeira testemunha da misericórdia, professando-a e vivendo-a como o centro da Revelação de Jesus Cristo. Do coração da Trindade, do íntimo mais profundo do mistério de Deus, brota e flui incessantemente a grande torrente da misericórdia. Esta fonte nunca poderá esgotar-se, por maior que seja o número daqueles que dela se abeirem. Sempre que alguém tiver necessidade poderá aceder a ela, porque a misericórdia de Deus não tem fim. Quanto insondável é a profundidade do mistério que encerra, tanto é inesgotável a riqueza que dela provém.

Neste Ano Jubilar, que a Igreja se faça eco da Palavra de Deus que ressoa, forte e convincente, como uma palavra e um gesto de perdão, apoio, ajuda, amor. Que ela nunca se canse de oferecer misericórdia e seja sempre paciente a confortar e perdoar. Que a Igreja se faça voz de cada homem e mulher e repita com confiança e sem cessar: « Lembra-te, Senhor, da tua misericórdia e do teu amor, pois eles existem desde sempre » (Sl 25/24, 6).

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 11 de Abril – véspera do II Domingo de Páscoa ou  da Divina Misericórdia – do Ano do Senhor de 2015, o terceiro de pontificado.
Francisco



[1] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Dei Verbum, 4.

[2] Discurso de abertura do Concílio Ecuménico Vaticano II, Gaudet Mater Ecclesia (11 de Outubro de 1962), 2-3.

 [3] Alocução na última sessão pública (7 de Dezembro de 1965).

 [4] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 16; Const. past. Gaudium et spes, 15.

 [5] Tomás de Aquino, Summa theologiae, II-II, q. 30, a. 4.

 [6] Domingo XXVI do Tempo Comum. Esta colecta já aparece, no séc. VIII, entre os textos eucológios do Sacramentário Gelasiano (1198).

 [7] Cf. Homilia 21: CCL 122, 149-151.

 [8] Exort. ap. Evangelii gaudium, 24.

 [9] João Paulo II, Carta enc. Dives in misericordia, 2.

[10] Ibid., 15.

[11] Ibid., 13.

[12] Ditos de luz e amor, 57.

[13] Enarratio in Psalmos, 76, 11.





Parábolas da Misericódia, neste "Ano Santo da Misericórdia", hoje proclamado pelo Papa Francisco


Parábola da ovelha perdida
Sobre a bondade de Deus para com os pecadores

Texto do Evangelho de S. Lucas 15, 1-7

Qual é o homem dentre vós que, possuindo cem ovelhas e tendo perdido uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto e vai à procura da que se tinha perdido, até a encontrar? Ao encontrá-la, põe-na alegremente aos ombros e, ao chegar a casa, convoca os amigos e vizinhos e diz-lhes: Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida.’ Digo-vos Eu: Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não necessitam de conversão.


Estamos perante uma parábola de profundo cunho eclesial.
Antes de se tecer qualquer comentário sobre o seu conteúdo doutrinal cabe por inteiro uma reflexão sobre a missão de Jesus.

Ele é em todos os aspectos humanos uma Pessoa perfeitamente identificada com uma realidade de povo e de pessoas. Com a sua vida de Missionário por excelência Ele  não só influenciou como se deixou influenciar pela cultura do seu tempo na postura de um judeu marcado pela vida, costumes e modo de ser dos judeus, ainda que, com sua missão viesse com a finalidade de transcender a história da sua gente, dando à sua doutrina um carácter de universalidade e transcendendo até mesmo aos critérios de tempo e de espaço.

Jesus veio chamar todas as ovelhas perdidas da casa de Israel, assumindo-se como imagem do Deus invisível, o primogénito de toda a criação; porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades; tudo foi criado por ele e para ele.  Ele é antes de todas as coisas, e nele subsistem todas as coisas. (1)
Como imagem que é do Deus invisível, O Pai Criador que ama todos os filhos, uma das Suas missões – talvez a mais importante, porque nela se fundem todos os valores divinos - era a da salvação de todos os homens, não deixando que um só se perdesse pelo caminho.

Resulta daqui que é um erro pensar-se que somente pessoas boas podem alcançar o céu e que as más vão para o inferno, ou seja, que todos os que vivem sem pecado se salvam e um só que seja, desgarrando-se dos outros, esteja condenado para sempre
Jesus não quer que isto aconteça e vai, por isso, à procura da ovelha perdida, abrindo com esta atitude a porta da esperança e da misericórdia de Deus, sempre aberto ao perdão e cujas Palavras não deixam a menor dúvida quanto à salvação  possível pela obra da graça, pois: Por certo não há justo na terra que só faça o bem sobre a terra e não peque. (2)

Com a simpática parábola da ovelha perdida ou desgarrada, Jesus quer-nos dar de uma forma eficaz e com entendimento fácil, o valor da salvação da alma.
Com Bom Pastor que era, embora a perda de uma em cem das ovelhas do rebanho parecesse coisa de somenos importância, deixou-nos a lição de só por ela serem merecidos todos os trabalhos para o seu encontro, parecendo, até, justificado o esquecimento das restantes.
Uma outra lição que esta parábola nos dá é a certeza evangélica de todos sermos filhos de Deus, sendo, desse modo – as ovelhas do rebanho - de acordo com a bela imagem evangélica e em consequência dela, herdeiros de Deus, porque os que crêem serão revelados nos céus eternos como filhos do Pai celestial,  tendo parte como herdeiros de toda a riqueza da glória de Deus.

Isto supera nossa capacidade de entendimento mas é assim que está determinado, razão porque se torna urgente a procura de quem se perdeu no meio da escuridão do mundo.
É, precisamente, para iluminar a ovelha perdida que deixou de ver o caminho da salvação que Jesus nos chama tendo-se em conta o usufruto da herança  prometida a todos os homens.
Jesus nunca falou em vão, porque  Ele mesmo disse: Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão. (3)

É nesta certeza de que as palavras de Jesus são eternas e  se destinam a trazer de volta os homens desgarrados, porque elas nunca deixarão sem fruto quem delas se servir, competindo-nos ir com o arrimo que elas nos dão à procura de todos aqueles que são no rebanho de Deus as ovelhas perdidas, por culpa própria e, muitas vezes, por culpa de um mundo ingrato e cruel que as esqueceu e deixou de correr atrás delas para as animar no regresso que preciso fazer à Casa do Pai

Jesus chama-nos nesta parábola à prática de uma acção comum e prosseguida por todos aqueles que tendo perdido um objecto de pouco valor, ainda assim, deixam a posse certa de outros mais valiosos e não cessam a busca enquanto não encontram o objecto transviado, alegrando-se e fazendo uma festa quando tal acontece. É destes que a pena de S. Mateus se ocupa referindo as palavras do Mestre: Então os justos- ou seja, os homens bons que buscam aquele que se perdeu e é preciso reencontrar -  resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai. (4)

É um ensinamento antigo.
Velho de séculos.
O profeta Daniel, cujas palavras não eram estranhas a Jesus, já havia dito: (...) os que tiverem ensinado a muitos para a justiça, serão como estrelas para sempre, eternamente.(5)

É destas estrelas que a parábola se ocupa, lembrando aos homens a necessidade da procura daquela que no Céu de Deus deixou de brilhar.
É um desafio que temos pela frente, para que não venha a perecer um só destes pequeninos, na sábia expressão do Mestre que chama pequeninos a todos aqueles que num dado momento, estando em baixo, precisam da mão do outro para vir acima e que de modo nenhum pode ser recusada.


Quadro de James Tissot (1886-94)

Parábola da dracma perdida
Sobre o anseio em achar na ordem da fé
aquilo que se perdeu

Texto do Evangelho de S. Lucas 15, 8-10

Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas e perdendo uma dracma, não acende a candeia, e não varre a casa, buscando com diligência até encontrá-la? E achando-a, reúne as amigas e vizinhas, dizendo: Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que eu havia perdido.  Assim, digo-vos, há alegria na presença dos anjos de Deus por um só pecador que se arrepende


A dracma era moeda de pouco valor.
Eram precisas cem para se possuir uma mina e seis mil para um se ter um talento.
Jesus utiliza, na linha já traçada na da parábola da ovelha perdida um sentido eclesial nesta parábola, com o pormenor da perda ser uma moeda, dizendo que a mulher tinha dez e perdeu uma, mostrando à evidência que a perda era de pouca monta, o que não evitou, porém, que ela se esforçasse e varresse  a casa com todo o cuidado até a encontrar.

Somos levados a concluir que o sentido último que Jesus alcança de uma forma transcendente, servindo-se como de costume com um exemplo ou comparação com um facto da vida quotidiana, é o amor  perseverante de Deus que nunca abandona o pecador deixando-o entregue ao seu destino de perdição, mas tudo faz até o encontrar, alegrando-se com ele com paternal solicitude, com uma diferença, que no fim conduz a um mesmo resultado, relativamente ao contentamento que existe sempre quando encontramos bens perdidos, sejam eles de ordem material ou espiritual.
 Efectivamente, enquanto o achamento da dracma perdida pela mulher se traduziu num benefício material imediato para ela, a volta do pecador – um encontro com ele mesmo - é traduzida por um bem maior que é encontrado e  traduzido no enriquecimento espiritual da Casa de Deus.

Um facto e outro, são sempre um motivo de alegria.
A mulher, ridente pelo achado exprime-se  do seguinte modo: Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que eu havia perdido. 
Jesus, porém, tem uma perspectiva diferente, de ordem doutrinal, podo-a na escuridão em que vive o pecador e era preciso chamar à luz dos bens espirituais.
A mulher da parábola é a figura da Igreja que Jesus fora chamado a fundar.
A dracma é o pecador entre uma multidão de justos.
Este número confortável, mesmo assim, só seria satisfatório na Nova doutrina que Jesus advogava, quando o elemento perdido voltasse a fazer parte da comunidade.
Jesus era exigente, nestas coisas.

Queria a unidade entre os homens, não podendo um só que fosse andar arredio e entregue aos maus caminhos. Não facilitava e não cedia. Queria sempre o pleno, a ponto de algumas vezes ter criado incomodidades no grupo apostólico.
Fazendo do pecador alguém que teria de ser salvo – Ele não viera para os sãos mas para os doentes – criou com a Palavra que dizia verdadeiras ferramentas espirituais de que S. Tiago nos dá conta, quando se dirigiu a um grupo de homens ricos que haviam esquecido um justo: E agora, vós ricos, chorai e pranteai, por causa das desgraças que vos sobrevirão. As vossas riquezas estão apodrecidas, e as vossas vestes estão roídas pela traça.  O vosso ouro e a vossa prata estão enferrujados; e a sua ferrugem dará testemunho contra vós, e devorará as vossas carnes como fogo. Entesourastes para os últimos dias.  Eis que o salário que fraudulentamente retivestes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos clama, e os clamores dos ceifeiros têm chegado aos ouvidos do Senhor dos exércitos. Deliciosamente vivestes sobre a terra, e vos deleitastes; cevastes os vossos corações no dia da matança. Condenastes e matastes o justo(...) (6)

O pecador, muitas vezes, é o justo que se afasta ou é afastado pelos mais poderosos.
A dracma perdida é este pecador afastado por si mesmo ou vítima de uma sociedade egoísta, que não se importa de o perder nem vai à sua procura, porque nesta sociedade de consumo estão faltando os valores da solidariedade que fazem o homem voltar atrás para por no bom caminho aquele que se perdeu.
Mas, vós Senhor, como se diz o Salmo, bem conheces a minha estultice, e as minhas culpas não te são ocultas.(7)

A dracma perdida é, ainda, algo que nos leva a concluir que por um motivo qualquer lhe faltou a luz das restantes que aquela mulher contava entre os dedos, à luz do dia.
Vivia de tal modo na escuridão que seria preciso, à sua proprietária acender a candeia  como Jesus sugere.
Temos aqui em profusão o sentido da Luz de Deus para iluminar os homens, chamando-os à comunhão entre os seus iguais e vivendo a essa Luz perfeita que tem a particularidade de os iluminar por dentro e por fora e de que S. João se fez eco:  E esta é a mensagem que dele ouvimos, e vos anunciamos: que Deus é luz, e nele não há trevas nenhumas. Se dissermos que temos comunhão com ele, e andarmos nas trevas, mentimos, e não praticamos a verdade; mas, se andarmos na luz, como ele na luz está, temos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus seu Filho nos purifica de todo pecado. Se dissermos que não temos pecado nenhum, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós.  Se confessarmos os nossos pecados, Ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça.  Se dissermos que não temos cometido pecado, fazemo-Lo mentiroso, e a Sua palavra não está em nós. (8)

A dracma perdida pode, por isso, ser um de nós.
Homens sujeitos ao pecado, como diz S. João.
Homens que é preciso encontrar, num dia qualquer para os chamar ao encontro da Luz e da comunhão com os outros.
É esta uma das atribuições da Igreja.


Quadro de Rembrandt (século XVII)

Parábola do Filho Pródigo
Sobre o regresso do pecador à Casa do Pai

Texto do Evangelho de S. Lucas 15, 11-32

Disse-lhe mais: Certo homem tinha dois filhos. O mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte dos bens que me toca. Repartiu-lhes, pois, os seus haveres. Poucos dias depois, o filho mais moço ajuntando tudo, partiu para um país distante, e ali desperdiçou os seus bens, vivendo dissolutamente.

E, havendo ele dissipado tudo, houve naquela terra uma grande fome, e começou a passar necessidades. Então foi encontrar-se a um dos cidadãos daquele país, o qual o mandou para os seus campos a apascentar porcos. E desejava encher o estômago com as alfarrobas que os porcos comiam; e ninguém lhe dava nada. Caindo, porém, em si, disse: Quantos empregados de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui pereço de fome! Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e diante de ti;  já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus empregados. Levantou-se, pois, e foi para seu pai. Estando ele ainda longe, seu pai o viu, encheu-se de compaixão e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou.

Disse-lhe o filho: Pai, pequei conta o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Mas o pai disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa, e vesti-lha, e ponde-lhe um anel no dedo e alparcas nos pés;  trazei também o bezerro, cevado e matai-o; comamos, e regozijemo-nos, porque este meu filho estava morto, e reviveu; tinha-se perdido, e foi achado. E começaram a regozijar-se. Ora, o seu filho mais velho estava no campo; e quando voltava, ao aproximar-se de casa, ouviu a música e as danças;  e chegando um dos servos, perguntou-lhe que era aquilo.

Respondeu-lhe este: Chegou teu irmão; e teu pai matou o bezerro cevado, porque o recebeu são e salvo. Mas ele se indignou e não queria entrar. Saiu então o pai e instava com ele. Ele, porém, respondeu ao pai: Eis que há tantos anos te sirvo, e nunca transgredi um mandamento teu; contudo nunca me deste um cabrito para eu me regozijar com meus amigos;  vindo, porém, este teu filho, que desperdiçou os teus bens com as meretrizes, mataste-lhe o bezerro cevado. Replicou-lhe o pai: Filho, tu sempre estás comigo, e tudo o que é meu é teu;  era justo, porém, regozijarmo-nos e alegramo-nos, porque este teu irmão estava morto, e reviveu; tinha-se perdido, e foi achado.

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Esta parábola, conjuntamente com a da ovelha e a da dracma perdidas, constitui o tríduo das parábolas da misericórdia de Jesus, recolhidas por S. Lucas. Jesus abarca, entre outras, quatro questões fundamentais:

1 - a vivência do homem numa sociedade sem valores.
2 - a certeza de que, quem pede, alcança.
3 - a confissão do pecado.
4 - pôr-se a caminho na esperança de ser perdoado.

Diz o texto que o filho mais novo tendo juntado tudo o que fazia parte da herança do pai, partiu para uma terra longínqua e por lá esbanjou tudo quanto possuía, vivendo dissolutamente, donde se percebe que o meio social não lhe foi favorável, a ponto de o ter enredado numa teia falha de valores morais, ao arrepio dos que recebera em casa do pai através duma educação honrada que fazia do trabalho uma fonte de moralização dos costumes.

E este passo vivido por aquele gastador em vícios de má sorte é um retrato que descobre a pobreza e é causa de todos os males, pondo muita gente honesta - como ele era - a passar fome, tendo a montante dos problemas criados entre outras, três questões sociais, a primeira, religiosa por ter principiado pela negação das leis de Deus, a segunda  situada no campo da moral por afectar as relações entre os homens e os deveres que devem existir entre eles e, finalmente, a terceira, focada no campo da economia material, como aconteceu com o pródigo, gastando a riqueza recebida sem cuidar que naquela atitude estava a malbaratar a própria dignidade humana, tão necessária ao equilíbrio espiritual.
Tudo isto aconteceu com o pródigo naquela sociedade sem Deus.

Tendo, de acordo com o texto evangélico, tendo sobrevido a fome naquela terra distante, o pródigo, gastos que estavam todos os bens, deu em procurar um emprego que fosse digno da educação recebida, o que não conseguiu, tendo por fim alcançado um lugar de pastor de porcos, onde o trato destes era superior àquele que lhe era dispensado, bem de acordo com a falta de moral e doutrina daquele patrão que maltratava desta maneira a sua miséria.
Bem desejava ele encher o estômago com as alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava.
Naquela sociedade não havia nem justiça, nem caridade, os dois pólos donde irradia a paz social que só existe a começar pelo usufruto da justiça plena, como há muitos séculos o sustentou Isaías ao preconizar uma era verdadeiramente feliz pela transformação da sociedade de Israel, dizendo: Efeito da justiça será a paz e obra do direito uma tranquilidade e segurança para sempre. (9)

Ao pensar naquele patrão impiedoso, lembrou-se o pródigo de uma verdade: o mal não estava naquilo que ele possuía mas naquilo de que ele abusava, sem respeito por Deus nem pelo próximo, donde a lembrança do pai passou a agigantar-se, porque lá, os empregados tinham pão em abundância e ele estava aos poucos a morrer de fome.
Neste passo, chegamos ao cerne da parábola.
É o Coração de Cristo que chega ao nosso entendimento através do problema criado pelo esbanjador, não se devendo deixar cair nenhuma das lições, nem qualquer pormenor.
Entrou este em profunda reflexão.
Lembrou-se de tudo. Da forma altiva como pediu - ferindo o coração do pai - a parte da herança que lhe cabia e como em estroinices e com costumes devassos se arruinou.
 Foi, então, que aquele coração de pedra tornado um ingrato e coberto de vergonha se encheu de uma formidável coragem evangélica e tendo entrado dentro de si mesmo onde uma luz escreveu em letras redondas bem dentro da sua alma o ensinamento divino: pedi e recebereis, pensou em regressar a casa.
Sem andar um metro que fosse, deu um passo de gigante.

Jesus aponta deste modo o caminho da regeneração, sendo necessário e absolutamente indispensável o arrependimento.
Até ali o pródigo era um vulcão incandescente a soltar pelos monte abaixo do desnorte as lavas do pecado de uma falsa felicidade, para naquele momento, tudo se conjugar para o voltar do avesso e fazer regressar para dentro de si, aquietado e calmo o vulcão em que transformara a sua vida.
Lá longe, o pobre pai consumia-se em orações, pedindo a Deus por aquele filho, do qual dizia muitas vezes: ele é bom e há-de voltar quando vir o mal que fez. Ele há-de considerar em todos os bens que perdeu.
Este pai é Deus.
Ele espera sempre pelos filhos pródigos que O abandonaram.
E aqui, cabe por inteiro a lamentação de Jesus sobre Jerusalém, que lhe foi tão ingrata ao ponto de O abandonar: Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os pintainhos debaixo das asas, mas deixando ficar expressa a esperança, de um dia, convertida, disser: Bendito o que vem em nome do Senhor! (10)

Era daquele jeito a esperança do pai do pródigo. Ele é bom e há-de voltar quando vir o mal que fez. Ele há-de considerar em todos os bens que perdeu.
E ele considerava e via tudo à distância.
Meu pai vai receber-me.
E pôs-se a caminho, num certo dia, levando no alforge das suas inquietações duas determinações: a primeira, a de pedir perdão e a segunda, pelo facto, de já não poder fazer parte do resto da fortuna da casa de seu pai, aceitar de bom grado qualquer lugar que este lhe destinasse, donde não excluía o lugar de criado.
Levantar-me-ei e irei ter com meu pai e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o Céu e contra ti, já não sou digno de ser chamado teu filho, trata-me como um dos teus jornaleiros.
Que bela é esta oração!

Jesus quer mostrar, ao falar deste modo, qual a atitude que deve ser tomada pelo arrependido no acto da sua conversão, que se não existe sem a graça de Deus, existe sempre n’Ele a graça de a oferecer a todo o homem transviado.
Chega, finalmente, o pródigo aos subúrbios da aldeia.
Relata o texto que o pai o viu ainda longe e se encheu de compaixão.
Percebeu de imediato que aquele filho desencaminhado voltava para se retratar e pedir perdão para as suas faltas, perdão que nunca lhe seria negado, porque era  pai e sabia que para a sua crença era péssima a morte do pecador. Abriu-lhe os braços e nem ouviu o filho quando ele disse: já não sou digno de ser chamado teu filho.
Jesus mostra o Coração de Deus: grande e misericordioso para com todos os homens sinceramente arrependidos.

Há nas atitudes do filho e do pai duas orações distintas: no filho a de arrependimento e na do pai, de perdão infinito, como traduções fiéis do que deve ser a oração: a elevação do espírito e do coração a Deus com o intuito de O glorificar e lhe pedir ou agradecer.
Pedi e recebereis, era a oração do filho.
Graças vos dou, Senhor, porque este filho estava perdido e voltou, era a oração daquele pai que todos os dias olhava o horizonte na esperança de ver o filho em qualquer vulto que aparecesse ao longe.
Quando tal aconteceu, aquele pai extravasando alegria manda matar um novilho e preparou tudo para dar uma festa.
Diz o texto que o filho mais velho estava no campo entregue às tarefas da lavoura e que ao chegar a casa deparando com a alegria própria do banquete que estava em marcha, chamou um dos servos a quem perguntou o significado de tanta azáfama: o teu irmão voltou e teu pai matou o vitelo gordo, porque chegou são e salvo, foi a resposta a que não faltou o pormenor de ter sido morto um vitelo gordo, logo um dos melhores das manada.
Cheio de cólera deu sinais de não querer entrar em casa, o que obrigou o pobre pai a vir fora e pedir-lhe que mudasse de ideias.

Esta impertinência foi a nota discordante daquela festa, onde o pai queria por o sentido da comunhão, com o aumento da caridade para com Deus e com o próximo, com a alegria de estar de volta um convertido ao lar paterno.
Jesus, bem sabia como era preciso inculcar nas pessoas a caridade onde o Reino de Deus estivesse presente em todo o seu esplendor, como sendo ela a maior de todas as virtudes e, logo, havia de ter encontrado no outro dos seus filhos - que não perdoara ao irmão - tamanha teimosia em aceitar de bom grado o seu regresso.
Jesus apostara num mandamento novo que mandava amar antes de sermos amados, querendo, por isso, emendar os antigos que haviam corrompido a lei primitiva e, ao invés, amavam os amigos odiando os inimigos, grupo de pessoas onde estava o irmão que saíra de casa, pela forma como respondeu ao pai: Há já tantos anos que te sirvo sem nunca transgredir uma ordem tua e nunca deste um cabrito para me alegrar com os meus amigos.
Para ele o irmão era um inimigo.

Havia consumido a fortuna com meretrizes.
Não merecia aquela festa e, logo, com a matança do vitelo mais gordo.
Filho - disse-lhe o pai - tu sempre estás comigo e o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e encontrou-se.
Esta é a caridade perfeita, feita de amor imaculado e que põe Deus a morar dentro do homem e que S. João haveria de registar: Amemo-nos mutuamente, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama é gerado por Deus e conhece a Deus. (11)

A parábola do filho pródigo é o mais perfeito exemplo da caridade cristã. Nela fica exposta a grande revolução operada por Jesus, que desde então queria mudar o sentimento do amor em relação ao próximo, sobretudo quando ele se arrepende de atitudes impensadas, devendo merecer pelo seu acto nobre, todo o amor, como aconteceu com o pai da parábola: tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e encontrou-se.
Aquele pai queria acabar com o motivo da discórdia: a mim não me deste e a ele, que tudo esbanjou, deste-lhe mais. Aquele pai percebeu desde logo a inveja do filho mais velho e o ciúme que lhe corrompia a  alma e tudo fez para ele perceber a razão da festa.
Deus é o Pai da parábola.

Vem, solícito fora de casa rogar ao filho falho de caridade, que entre para dentro de casa a fim de tomar parte no banquete prestes a começar.
Jesus responde com esta benevolência a todos os fariseus que não viam bem o facto d’Ele entrar e comer em casa de pecadores, fazendo-lhe sentir que todos os homens eram seus irmãos, sendo absolutamente necessário que o filho mais velho que não encontrou modos de se regozijar com a alegria do pai tomasse o seu lugar à mesa.
Todos somos chamados a tomar o nosso lugar na festa de Família para onde o Pai nos chama, sem excepção de nenhum, mas desejando que todos sejam convivas do mesmo banquete.

A mesa está posta.

Às críticas do filho melindrado, pode dizer aquele pai extremoso, com modos brandos e apaziguadores: Filho, tu está sempre comigo (...) uma frase lapidar que nos deixa perceber o quanto havia de grandeza na sua alma daquele pai.
E todos os dias, como acontecia com este pai da parábola, Deus olha os horizontes, na esperança de ver chegar de longe ou perto todos aqueles que se perderam por caminhos estreitos, como aconteceu com o pródigo, filho amado da sua grande misericórdia.



(1)  - Col 1, 15-17
(2)   - Ecl 7, 20
(3)  - Mc 13, 31
(4)  - Mt 13, 43
(5)  - Dn 12, 3
(6))  - Tg 1, 5-6
(7)  - Sl  69, 6
(8)  - 1 Jo 1 5-10
(9)  - Is 32, 17
(10)  - Mt 23, 37
(11) - 1 Jo, 4, 7


segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Dia 8 de Dezembro de 2015 : Jubileu do "Ano Santo da Misericórdia"

A Porta Santa da Sasílica de S. Pedro (Roma)


A abertura da Porta Santa, na Basílica de São Pedro, em Roma, amanhã, dia 8 de Dezembro vai marcar o início do  Ano Santo do Jubileu da Misericórdia com o seu fim no dia 20 de Novembro de 2016, solenidade de Cristo-Rei.

O nome de Jubileu tem os ses primórdios num hábito do povo hebreu que acontecia de 50 em 50 anos - derivando daí o nome de "jubileu" - e durante o qual se fazia a restituição por igual a todos os habitantes de Israel que tinham perdido as suas propriedades, ou até, a liberdade pessoal, fazendo recordar aos ricos que era chegado o tempo em que os escravos se equivaliam a eles, podendo reivindicar os seus direitos, segundo um preceito da lei mosaica.

Dois exemplos do Antigo Testamento:



Durante seis anos semearás a tua terra e colherás o seu produto. No sétimo ano, porém, deixá--la-ás em pousio e abandoná-la-ás; os pobres do teu povo comerão, e os animais do campo comerão o que restar. Farás do mesmo modo para a tua vinha, para o teu olival. (Ex 23, 10-11)

Contarás sete semanas de anos, isto é, sete vezes sete anos; de forma que a duração de estas sete semanas de anos corresponderá a quarenta e nove anos. Depois, farás ressoar fortemente a trombeta, no décimo dia do sétimo mês. No dia do grande Perdão, fareis ressoar o som da trombeta através de toda a vossa terra. Santificareis o quinquagésimo ano, proclamando na vossa terra a liberdade de todos os que a habitam. Este ano será para vós um Jubileu; cada um de vós voltará à sua propriedade, e à sua família.

O quinquagésimo ano é o ano do Jubileu: não semeareis, não colhereis do que cresce espontaneamente, nem vindimareis as vinhas que não foram podadas. Porque é o Jubileu, deve ser uma coisa santa para vós e comereis o produto dos campos. Neste Jubileu, cada um de vós recobrará a sua propriedade. Quando fizeres uma venda ao teu próximo, ou se comprares alguma coisa, não vos prejudiqueis um ao outro. Farás essa compra ao próximo, tendo em conta os anos decorridos depois do Jubileu, e ele fará essa venda tendo em conta os anos das colheitas. Conforme os anos forem mais ou menos numerosos, assim tu pagarás mais ou menos pelo que adquirires, porque é um número de colheitas que ele te vende. Não vos prejudiqueis uns aos outros. Teme o teu Deus, porque Eu sou o Senhor, vosso Deus.» (Lev 25, 8-17)


O primeiro Jubileu ocorreu no ano 1300 por instituição do Papa Bonifácio VIII tendo-se-lhe seguido o de 1350 - com o Papa exilado em Avinhão - depois, sem a mesma periodicidade, em 1390, 1400, 1423 - o da restauração pós-crisma - 1450, 1475; 1500; 1525,  o da crise religiosa na Europa - 1550, o do Concílio de Trento; 1575; 1600; 1625: 1650, o da restauração da Catedral de Roma para o Ano Santo; 1675, onde pela primeira vez a colunata de Bernini acolhe os peregrinos; 1700, o chamado Jubileu do chamado "século das luzes" fundado sobre o culto da "razão"; 1725, o Ano Santo do resgate dos escravos: 1750, o Ano Santo da Cruz do Coliseu: 1775; 1825; 1875; 1900; 1925, o Ano Santo da pacificação da paz; 1950, o Jubileu "do grande retorno e do grande perdão"; 1975, o Jubileu da reconciliação e da alegria; 2000, com a celebração dos 2000 anos da Encarnação de Jesus Cristo.

No ano em curso, em 13 de Março, o Papa Francisco anunciou a celebração dum Ano Santo especial com a abertura da Porta na Basílica Vaticana durante a solenidade da Imaculada Conceição.
Será o Ano Santo da Misericórdia, tendo-se adoptado para as leituras do Evangelho do Tempo Comum o evangelista S. Lucas, chamado "o evangelista da misericórdia", no qual as parábolas da misericórdia "A ovelha perdida"; A moeda perdida e o "Pai misericordioso" são preponderantes, enquanto marcos religiosos que balizam a nossa caminhada humana.


sábado, 5 de dezembro de 2015

Calma. "Roma e Pavia" não se fizeram num dia!

Gravura publicada pelo Jornal "O Thalassa"
de 29 de Maio de 1913
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Tem havido sempre, ao longo da História, muitos cavaleiros que aprenderam a arte de "passar a perna" e, num ápice, chegaram onde nunca haviam sonhado chegar.

O cavaleiro da gravura, como era de ver, ganhou o 1º prémio...

E porque a História nunca acaba, não nos admiremos destes primeiros prémios continuarem a existir - como agora aconteceu - porque tudo isto faz parte do circo humano em que se transforma a vida, sobretudo, quando ela se deixa subverter e toma como válido o que o não é ou como moral dos costumes aquilo que contribui para os não respeitar

Uma antiga "Circular"...


Publicação do Jornal extinto "O Thalassa" 
de 15 de Agosto de 1913
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Exceptuando os nomes das personagens "Bernardino"; "António José" e "Largo da Calhariz", tudo o resto, de certo modo, se enquadra no tempo actual.

  • Preços de ocasião, filhos do credo novo.
  • Político bazar feito só para o povo.
  • Não se engana ninguém...
  • Garante-se a fazenda...
  • Acreditem que é boa gente.
  • Crenças revolucionárias por nossa intervenção tornam-se partidárias do governo actual.
  • É bom que o povo entenda que se trabalha aqui também por encomenda:
  • A ciência para nós não guarda felizmente, um segredo sequer, inda o mais transcendente.
  • Vendemos muito em conta heróis de papelão...
  • É bom que o povo entenda: a casa faz leilão não é por precisar mas por fim de estação.
  • Milagre radical devido à evolução que lavra, felizmente agora na nação.
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Caiu-me este texto bem humorado intitulado "CIRCULAR", publicado pelo velho jornal "Thalassa" de humor e caricatura que viu a luz entre 1913 a 1915, e em cuja linha editorial foi dito que: arredamos por completo das nossas páginas toda a crítica que possa ferir a vida particular seja de quem for, limitar-nos-emos a fixar os aspectos públicos dos personagens, algo que deve continuar a ser respeitado, no uso do sábio conceito de Santo Agostinho: ama o homem mas combate o seu erro.

Um século e picos depois, que ninguém me leve a mal de fazer lembrar esta velha CIRCULAR, porquanto o que nos resta, enquanto povo que somos e pelo modo como sabiamente temos suportado os tempos que nunca nos foram fáceis - e só para lembrar os da implantação da República até hoje - o que nos resta é mantermos viva a chama heróica que fez de Portugal pequenino uma Pátria que foi grande pelo tamanho - e continua grande - porque o povo continua a brincar com as marés que tem tido e com os "Vascos da Gama" que tem posto a comandar a nau das suas tormentas, sempre dispostos a passar e vencer os novos "Adamastores".

Não deixo de os admirar, ainda que não me mereçam simpatia política, mas só nisto, que em tudo o mais, todo o homem é meu irmão no bom estilo bíblico, que penso, devia ser a bússola de um "norte" que anda algo perdido, por aí.


quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

"Eu te ofereço a Paz"




EU TE OFEREÇO A PAZ

Que os jardins da tua vida
Sejam abençoados com Paz.
Que ela flua livremente do teu coração e espírito
Assim como a água escorre e flui.

Que uma paz duradoura
Esteja contigo e com os que compartilham o teu Amor.
Que possas caminhar pacificamente
entre as marés e ondas da Vida
Sabendo que és amado e  especial...

Podes sentir-te insignificante
Entretanto, lembra-te
Que tu és importante!

És parte de um plano mestre.
Não temas o futuro
Pois Amanhã o Sol nascerá
E te oferecerá a Paz

Desejo-te longas jornadas
Luz de velas, Amor e...
Acima de tudo
Te ofereço a Paz.

"I bid you peace"

Autor Desconhecido

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Acima de tudo te ofereço a Paz.

Assim termina o "autor desconhecido" este belo poema de amizade, oferecendo o que de melhor cada homem deve oferecer ao outro, se o espírito que o faz viver fosse mais apaziguador e menos bélico, se se centrasse no sábio - como são todos os conselhos de Deus - que no Livro do Levítico (26,6) se expressa assim: Farei reinar a paz na vossa terra e ninguém perturbará o vosso sono; farei desaparecer as feras, e a espada não passará pela vossa terra.

Infelizmente, na terra que temos, cada homem, parece, fazer gáudio de andar de espada na mão, em guerra permanente contra o seu igual, pelo que, é de agradecer a este atento "autor desconhecido" que deixa à consideração de cada um de nós este desejo de paz.

Acima de tudo te ofereço a Paz.

Devia ser assim. Efectivamente, "acima de tudo", porque ela é com a sua imaterialidade a que constrói mais os caminhos da vida, por onde procuramos viver na procura material dos bens que nos fazem falta, tendo sempre presente que todos somos parte de um plano mestre... onde Deus opera sem que o percebamos!

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Inacreditável, sr. António Costa!


Aconteceu, hoje no Parlamento no 1º dia do debate do programa do XXI Governo Constitucional (arranjado "às três pancadas").

Num dado momento (17h21) o deputado do PSD Hugo Lopes Soares, perguntou a António Costa:
  • "quais são as prestações não contributivas a que vai impor uma condição de recurso". No fundo, Hugo Soares quis saber quais são as "prestações sociais que vai cortar"
 Não obteve resposta, pelo que às (17h45) voltou, tentando obter a resposta a que tinha direito. Ele e Portugal inteiro, porque não é de bom tom que na Casa da República alguém se furte a responder a uma interpelação... mas aconteceu o inacreditável.
  • António Costa respondeu remetendo a resposta à pergunta do deputado para um programa de rádio em que participou na TSF. 
Este facto anómalo não fez desarmar Hugo Lopes Soares, tendo pedido ao Presidente da AR, o seguinte:
  • "Faça já distribuir na Assembleia as tais respostas para que de uma vez por todas os portugueses possam saber que prestações não contributivas o Governo se preparar para cortar"
Inacreditável a resposta do Primeiro-Ministro, como se todos os portugueses que deveriam ter tido no Parlamento a resposta, tenham de ir à procura dos arquivos radiofónicos da TSF para ficarem a saber "as prestações sociais" que vão sofrer cortes.

Então para que serve o Parlamento?

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

"Passar a perna" não é para todos!


Gravura publicada pelo jornal extinto "O Zé" 
de 29 de Janeiro de 1914


Bem explícito, lê-se na bota de quem "passou a perna" - DEMISSÃO - e no que foi demitido o ar de quem se sente "corrido a pontapé" mas o que mais me intriga na gravura é a figura do povo, de cacete debaixo do braço, sem aspecto ameaçador e de boca aberta e cuja expressão pode dizer:
  • Bem feito!
Ou então:
  • Ele não merecia isso!
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O actual Governo duma coisa não se livra: de não ter autoridade eleitoral, pois no concreto, ele resulta da substituição simples de uma maioria que foi eleita pelo eleitorado, por uma outra a quem o eleitorado não deu a vitória, tendo esta resultado de um "arranjo de comadres" só com o único objectivo de "correr a pontapé" aquele que foi o vencedor das eleições.

Não me cansarei de dizer isto:

Enquanto o PS não de legitimar perante o povo, tendo neste momento obtido o poder da circunstância constitucional de não poderem ser repetidas as eleições do passado dia 4 de Outubro, não posso falar doutro jeito.

Advém daí, o facto de poder dizer que a expressão do povo - tal como a gravura reflecte, não é a de achar bem o pontapé que levou à demissão da coligação PSD-CDS, mas antes o repúdio por quem teve artes de "passar a perna", zombando daquele que ficou com o poder, mas à mercê dos bons ares que pode - ou não - vir a ter dos que lho garantem, por agora.

Mas como "passar a perna" não é para todos, será que vai acontecer isso com os tais?
Não acredito!