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segunda-feira, 9 de junho de 2014

As interrogações de Florbela!




Interrogação

A Guido Batelli

 Neste tormento inútil, neste empenho
 De tornar em silêncio o que em mim canta,
 Sobem-me roucos brados à garganta
 Num clamor de loucura que contenho.

 Ó alma de charneca sacrossanta,
 Irmã da alma rútila que eu tenho,
 Dize p'ra onde vou, donde é que venho
 Nesta dor que me exalta e me alevanta!

 Visões de mundos novos, de infinitos,
 Cadências de soluços e de gritos,
 Fogueira a esbrasear que me consome!

 Dize que mão é esta que me arrasta?
 Nódoa de sangue que palpita e alastra...
 Dize de que é que eu tenho sede e fome?!


Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"



Não é fácil falar de Florbela, porque o encadeamento da sua vida é feito de tantas interrogações, a que ela nunca soube encontrar, uma resposta que fosse libertadora dos seus fantasmas existenciais, como acontece neste soneto a que chamou "Interrogação" como se nele houvesse apenas uma, quando no mesmo a poetisa deixou várias, e todas elas feitas à sua alma.

Em "O Homem Que Ri", Victor Hugo declara que a carne é cinza, a alma é chama, e foi a esta chama que ardeu como um vulcão em toda a sua vida, que Florbela faz perguntas, porque sabia que o seu corpo de pouco valia e, por isso, recorre à chama da alma que ela iguala à charneca alentejana, que apelida de - sacrossanta, sem ser por acaso porque ela sabia da santidade que trazia presa à sua alma - para que esta lhe dissesse o fim do seu destino e onde é que ele começou - Dize p'ra onde vou e donde venho - o que não deixa de ser, possivelmente, a interrogação maior de Florbela, por ser a que fazem todas as criaturas normais, poetas ou não.

No seu "Dicionário Filosófico" Voltaire, apesar de todos os seus bem conhecidos sarcasmos, quando fala da alma, chama à colação S. Tomás de Aquino e diz o seguinte: Diz Santo Tomás (questão septuagésima quinta e subseqüentes) que a alma é uma forma subsistente per se. Que está em todas as coisas. (...)

Ou seja, quando sentimos Florbela a interrogar a sua alma é porque ela sabia - tal como Victor Hugo - que o corpo é cinza e só a sua alma era a chama que havia de ficar por ser subsistente per se como asseverou o filósofo, dando-nos com a sua poesia o exemplo que devia interrogar todas as criaturas e de que se torna exemplar o último terceto:

Dize que mão é esta que me arrasta?
Nódoa de sangue que palpita e alastra...
Dize de que é que eu tenho sede e fome?!

Não sabemos - jamais alguém o saberá - porque Florbela levou com a tragédia que lhe ceifou a vida a resposta que teria tido - ou não - às perguntas que fez à sua alma, mas Deus queira, que à ultima pergunta - Dize de que é que eu tenho sede e fome? - tenha sentido o desejo de antecipar a imortalidade da sua alma, e como tal, a fez voar para um destino etéreo - que só podemos imaginar - mas tendo deixado aos seus leitores, ainda hoje e pelos tempos vindouros toda a força da sua alma de mulher inquieta que passou pela vida à procura de algo, que verdadeiramente, nunca encontrou.

Que Deus lhe tenha dado a paz que o corpo que serviu de morada  à sua alma nunca encontrou nos poucos anos em que viveu entre os mortais!

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