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segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Luis de Camões (1524? - 1580)





Sabe-se pouco da vida deste Poeta, o maior da língua portuguesa e dos maiores do mundo, alinhando o seu génio a par de Homero, Virgílio, Dante, Cervantes, Shakespeare e Goethe, constituídos como símbolos do valor e da gesta das suas respectivas Pátrias.
Camões, isto é sabido, é de origem de uma família nobre do vale de Minõr, na Galiza, tendo sido Vasco Peres de Camões a primeira pessoa que se fixou em Portugal no ano de 1370 na qualidade de apoiante do rei D. Fernando nas suas pretensões ao reino de Castela, tendo recebido como prémio as alcaidarias de Portalegre e Alenquer.
Este ascendente do Poeta veio a morrer na Batalha de Aljubarrota. Um seu descendente, João Vaz de Vila Franca teria siso o avô paterno de Luís de Camões. Segundo se crê, o pai, Antão Vaz, casou em primeiras núpcias com D. Guiomar Vaz da Gama, da família do navegador Vasco da Gama e, depois, com D. Ana de Sá, que se supõe ser a mãe do Poeta.
É ponto assente que a primeira biografia de Luís de Camões foi escrita em 1613,  por Pedro de Mariz (1550-1615), filho do livreiro de Coimbra, António de Mariz, no tempo em que Camões ali viveu.
Porém, nem ele nem outro qualquer biógrafo nos dá como certa a indicação do local e da data do seu nascimento, apontando-se como provável o ano de 1524. Várias localidades do País disputam a glória de ser seu berço, mas Lisboa e Coimbra com mais probabilidades de êxito.
Não custa a crer que tenha sido em Coimbra, pois é para esta cidade que ele dedica, quando parte um soneto emocionado que começa assim:

 
Doces e claras águas do Mondego,
doce repouso de minha lembrança (...)
e, ainda, a “Canção IV”,  cujos versos iniciais nos falam assim:
Vão as serenas águas
do Mondego descendo
mansamente, que até o mar não param;
por onde minhas mágoas
pouco a pouco crescendo,
para nunca acabar se começaram. (...)
 
Um seu tio paterno, D. Bento de Camões que foi cónego de Santa Cruz e chanceler da Universidade, parece ter sido o protector e mentor de seus estudos, mas é correcto afirmar-se que foi o próprio ambiente da Universidade, reformada em 1537 por D. João III, que  lhe ofereceu meios e curiosidades que foi satisfazendo através de um audotidatismo que o burilou como um poeta de uma viva cultura no seu tempo.
Na sua lírica floresceram temas de vária origem, emergindo da vida com toda a cor e o bulício desta, e é isso lhe dá um valor precioso que nos deve merecer todos os encómios.
Camões foi fidalgo e frequentador do Paço Real.
Neste convívio, segundo se crê, teria Camões amado quem não devia, tendo em conta o tempo em que vinha ao de cimo a desigualdade dos estados sociais, de que ele mesmo, se queixa, e como tal tivessem estado na origem da perseguição de algum pai fidalgo ou de um qualquer irmão régio, e cujas afrontas assim causadas, lhes tivessem apressado os desterroas a que foi sujeito.
Atribuem-se-lhe alguns, sendo um para Ceuta, onde se bateu como soldado em combate, um facto histórico que lhe custou a perda do olho direito.
Regressado de Ceuta, parece ter continuado a sua saga de prazeres e de rixas.
Ao que parece, Camões, nessas andanças de amores estouvados feriu numa rixa mais acesa, um tal  Gonçalo Borges – do Paço Real -  e, logo na tarde em que ocorria em Lisboa a procissão do Corpo de Deus. Preso de imediato no Tronco,  ali passou uns meses de prisão preventiva,  ao fim dos quais, tendo obtido do agredido, o perdão, conseguiu que o Rei, D. João III o pusesse em liberdade, com a promessa de o ir  servir na Índia.
Obtida a “Carta de Perdão” em 1553, parte para aquela parte do mundo dois anos depois.
Pelo Oriente a vida de Camões é tormentosa.
Com altos de glória, mas com depressões e descidas bruscas e impetuosas.
Da viagem feita pelo mar revoltado, ficou-lhe para sempre na memória  a tempestade a que assistiu, atónito e, naturalmente, com medo, na dobra do cabo da Boa Esperança e que ele não esqueceria jamais, tendo ali vivido a experiência da tempestade sofrida por Vasco da Gama e que ele haveria de descrever magistralmente no episódio do Adamastor , cuja figura é apresentada deste modo, no Canto Quinto, estrofe 39 de “Os Lusíadas”.
 
  "Não acabava, quando uma figura
        Se nos mostra no ar, robusta e válida,
        De disforme e grandíssima estatura,
        O rosto carregado, a barba esquálida,
        Os olhos encovados, e a postura
        Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
        Cheios de terra e crespos os cabelos,
        A boca negra, os dentes amarelos.
 
Ao fim de 16 anos, regressa a Portugal. Regressa sem ter de seu o pagamento da viagem, indo numa primeira leva para a ilha de Moçambique, onde não tinha com que pagar à nau que embarcasse de volta ao Continente.
Diz Diogo de Couto que ali o viu vivendo de esmola amigos, dando a última demão a “Os Lusíadas”.
Parte, finalmente, em 1569. Como única riqueza, trazia aquele Poema imortal, que ele mesmo refere - no canto X, estrofe 128 - ter salvo do naufrágio em que perdeu uma moça oriental a que vinha muito preso de amores e a que dedica um célebre soneto, que é o mais belo hino de amor da lírica portuguesa de todos os tempos:
 
 
Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.
 
Se lá no assento etéreo onde subiste,
memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.
 
E se vires que pode merecer-te
alguma coisa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,
 
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.
 
Luís de Camões conseguiu publicar “Os Lusíadas” em 1572 graças à influência de alguns amigos junto do rei D. Sebastião. Faleceu em Lisboa no dia 10 de Junho de 1580. É considerado o maior poeta português, situando-se a sua obra entre o Classicismo e o Maneirismo.
Mal entendido pelos estudantes a que um ensino ortodoxo impunha o estudo gramatical de “Os Lusíadas” , continua neste tempo, a não ser acarinhado, porque o ensino que temos se tem esquecido dele, que é, no entanto, a nossa grande glória poética.
É por isso, que nos parece importante do ponto de vista cultural e didáctico, lembrar a trama que ele cantou em cada um dos cantos de “Os Lusíadas” que é, como se sabe, um dos maiores e mais lindos Poemas épicos da Humanidade.
É uma jóia da época clássica, de que Camões é o expoente maior em Portugal.
 



CANTO I

Proposição: (estrofes 1 a 3) Intenção do poema: celebrar os feitos lusitanos, navegações e conquistas.
Invocação (estrofes 4 e 5) às ninfas do Tejo (Tágides) para que dêem inspiração.
Dedicatória (estrofes 6 a 18) ao rei D. Sebastião.
Narração: a partir da estrofe 19, Concílio dos deuses sobre a ousada decisão dos portugueses: devem favorecê-los ou impedi-los? Júpiter é favorável; Baco, ferrenhamente contrário; também são a favor Marte e Vénus, esta nos Portugueses vendo a raça latina descendente de seu filho Enéias. Baco, derrotado na assembléia divina põe em acção a sua hostilidade contra os lusitanos, procurando impedir por todos os meios que cheguem à Índia, e para isto se valendo da gente africana, que lhes arma ciladas.



CANTO II

Chegada a Mombaça, onde continuam as hostilidades de Baco na traição dos Mouros: os navegadores seriam sacrificados se acedessem ao pérfido convite do rei para desembarcarem. Vénus, porém, de novo os salva, intercedendo junto a Júpiter. Retracto de Vénus [36. "Os crespos fios d'ouro se esparziam / pelo colo (...)"]. Júpiter profetiza os gloriosos feitos lusíadas no Oriente (44 e ss.) e envia Mercúrio a Melinde, a fim de predispor os naturais desta cidade a bem acolherem os Portugueses, o que se cumpre. O rei de Melinde pede ao Gama lhe narre a história de Portugal.


CANTO III

Invocação à musa da eloquência e da epopeia, Calíope, e logo a narração do Gama ("Entre a Zona que o Cancro senhoreia..."): geografia e história de Portugal (destaque para a batalha de Ourique, a guerra contra os mouros, a batalha do Salado e, sobretudo, o episódio de Inês de Castro "Que depois de ser morta foi Rainha" — 118-35).



CANTO IV

Prossegue a narração do Gama, com relevo para Nuno Álvares Pereira e as batalhas contra os castelhanos, sobretudo a de Aljubarrota (28. "Deu sinal a trombeta Castelhana, / Horrendo, fero, ingente e temeroso"), as conquistas na África, a batalha de Toro, o reinado de D. Manuel e seu sonho do domínio das Índias, a partida para o Oriente e as famosas imprecações do Velho do Restelo (95. "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça"), 94-104, que em clímax inspirado encerram o canto.

 
CANTO V

Partida da expedição de Vasco da Gama. A tromba marinha (19-23). Na Ilha de Santa Helena; aventura de Fernão Veloso. O gigante Adamastor (38-60). Conclusão da narração.



CANTO VI

Festas aos navegadores em Melinde e partida da frota para Calecute. Novas insídias de Baco, junto a Neptuno. Descrição do reino de Neptuno (8-14). Fernão Veloso narra o episódio dos Doze de Inglaterra (42-69) para distrair a monotonia de bordo. Tempestade provocada pelo insidioso Baco (70 e ss.), com nova intervenção de Vénus (85 e ss.) que amaina o furor dos ventos. Chegada a Calecute (92), acção de graças de Vasco da Gama (93-4) e elogio da verdadeira glória — a dos que enfrentam "trabalhos graves e temores", " tempestades e ondas cruas".

 
CANTO VII

Chegada à Índia. Elogio de Portugal pelo Poeta. Descrição da Índia. Encontro com o mouro Monçaide, que descreve a Índia (31-41). Portugueses recebidos pelo regente dos reinos — O Catual, o Samorim. Troca de gentilezas e informações. O Poeta novamente invoca as musas (78 e ss.) para, inspirado,  poder prosseguir no canto.



CANTO VIII

Paulo da Gama, irmão de Vasco, narra ao Catual a história dos heróis portugueses (Luso, Ulisses, Viriato, Sertório, D. Henrique, Afonso Henriques, Egas Moniz, etc.). Baco insiste na perseguição, instigando em sonhos os chefes dos nativos. Hostilidades e retenção de Vasco da Gama em terra, que só se liberta a poder de dinheiro (93-6), donde se comprova  o poder corruptor do vil metal (96-9).

 
CANTO IX

Retenção de Álvaro e Diogo – ver estrofe 94 do canto VIII -  portadores da "fazenda" como um mero pretexto para deterem-se os descobridores europeus. Por fim, libertados, recolhem às naus que preparam a volta à Pátria. Vénus resolve premiar os heróis (18 e ss.) com prazeres divinos: descrição da Ilha dos Amores (51-87) e do seu simbolismo (88-95).

 

CANTO X

Banquete de Tétis aos Portugueses, na Ilha dos Amores. Canta uma ninfa profecias de Proteu. Nova invocação do Poeta a Calíope (8-9), que permita condigna conclusão do poema. Relembrança das profecias da Ninfa; glórias futuras de Portugal no Oriente (10-73). Tétis mostra a Vasco da Gama a máquina do Mundo, como a viu o sábio Ptolomeu (76-142) — céus e terras, com destaque para a Ilha de São Tomé (109-19). Partida da Ilha dos Amores e regresso a Portugal. Desalento do Poeta (145. "No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho / Destemperada, e a voz enrouquecida") por "cantar a gente surda e endurecida". Fala final a D. Sebastião e conclusão do poema

 

Cesário Verde (1855-1886)


 

Joaquim Cesário Verde nasceu no dia 23 de Fevereiro de 1855 na Rua da Padaria, ao pé  da Sé de Lisboa e morreu nas imediações do Paço do Lumiar, no dia 19 de julho de 1886.
 O pai, José Anastácio Verde, possuía um a loja de ferragens na Rua dos Fanqueiros. Era um comerciante conceituado, dono de uma quinta em Linda-a-Pastora, bem perto de Lisboa, e que deu a Cesário vários motivos de encanto e que ele não esqueceria. Em 1872 iniciou na loja do pai o contacto com o público e com a actividade comercial. Nesse ano, falece a irmã, Maria Júlia, a primogénita, vítima de tuberculose. Tinha dezanove anos  e esse facto havia de marcar para o resto da vida a sensibilidade do Poeta que lhe teceu versos de grande amargura, como estes:
 
Unicamente, a minha doce irmã,
Como uma ténue e imaculada rosa,
Dava a nota galante e melindrosa
Na trabalheira rústica, aldeã.

 
E foi num ano pródigo, excelente,
Cuja amargura nada sei que adoce,
Que nós perdemos essa flor precoce,
Que cresceu e morreu rapidamente!
 
Em 1873 matricula-se no Curso Superior de Letras onde conhece e se torna grande amigo do escritor António Silva Pinto, um moço arrebatado e simpatizante com os ideais da Comuna de Paris e que odiava a burguesia, pintando a sociedade entre exploradores e explorados. Começa por desprezar Cesário, que apelida de burguesinho mas fica seu amigo – e para sempre – quando leu os seus primeiros poemas que apareceram publicados no Diário de Notícias.
Na época era Director daquele Jornal, Eduardo Coelho, que em tempos fora caixeiro na loja do pai de Cesário e continuava a ter pelo antigo patrão uma grande estima. Foi quanto bastou para Cesário conseguir publicar no jornal os seus primeiros poemas.
Colabora, depois, em dois Jornais do Porto: Diário da Tarde e Tribuna.
O seu estro não passa despercebido a Ramalho Ortigão que lhe dedica uma das suas Farpas, a propósito do poema Esplêndida.
Trava amizade com o autor da Musa Alentejana, António de Macedo Papança, o futuro conde Monsaraz e enceta colaboração no Mosaico (Coimbra) cruzando-se com Junqueiro, João de Deus e Gomes Leal.
Em 1877 tem os primeiros achaques de tuberculose e passa a viver na sua quinta de Linda-a-Pastora, cujos ares são mais sadios.  Em 1880 dá à estampa  O Sentimento dum Ocidental no número do Jornal de Viagens que se publicava no Porto, dedicado ao tricentenário de Camões.
Em 1881 participa no “Grupo do Leão” (1) Convive com  José Malhoa, Silva Porto, Columbano e Rafael Bordalo Pinheiro e com Abel Botelho, Alberto de Oliveira, Fialho de Almeida e Gualdino Gomes.
Em 1884 deixa de frequentar os meios literários. Recolhe-se na sua quinta de  Linda-a-Pastora. No ano seguinte agrava-se o seu estado de saúde e instala-se em Caneças e, depois, aceita a hospedagem de um amigo que possuía uma casa no Lumiar, onde faleceu aos 31 anos de idade.
No centenário da sua morte a edilidade lisboeta honrou a sua memória descerrando uma lápide na casa do Largo de S. Sebastião, última morada em vida do Poeta de Lisboa e dos seus costumes, dos quais traçou quadros de grande beleza literária e de um grande realismo. Em 1887 Silva Pinto, o seu grande amigo,  edita O Livro de Cesário Verde que é dedicado ao seu irmão Jorge Verde. Com uma tiragem de 200 exemplares englobava  os  trabalhos poéticos produzidos entre 1873 e 1886, sucedendo-se edições em 1901, 1911, 1919, 1926, 1945, etc.
O Poeta que inicialmente se assumiu influenciado pelo Parnasianismo (2) evoluíu com extrema rapidez para um realismo social, procurando nas imagens do quotidiano motivos para deixar aguarelas literárias de fino recorte, instituindo-se como um precursor e ponto de partida de um modernismo na Poesia portuguesa, tematizando com raro brilho poético as cenas da cidade com todo o seu bulício, buscando ali toda a dimensão humana e conseguindo valorizar o vocabulário urbano, num ritmo ondulante que não só fixa os horizontes do que exprime como os abre à sensibilidade humana.
Cesário foi um repórter lírico que se deixou atrair pela cidade de Lisboa, um facto que o singulariza de tal modo que parece, pelo precursor que foi, que o seu neo-realismo fez escola e viria a encontrar expressão após a Segunda Guerra Mundial.
Do seu passear pelas docas de Lisboa e da azáfama que nelas viu expressa nas varinas, a sua fina sensibilidade de artista ímpar deixou-nos este quadro muito belo, retirado do poema Ave Marias:
 
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
 
E da sua rara sensibilidade, que o levava a captar a vida nos seus pormenores da labuta diária dos homens que trabalhavam, não deixou escapar, profissões como o  cutileiro, a  forjador e o padeiro, que junta numa simples quadra, que é um retrato da vida como este, intitulado Ao Gás:
 
Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
 
E ao perder-se pelas ruas da cidade de Lisboa, há no mesmo poema, alguma amargura de não ser capaz de as pintar em versos magistrais, quando, afinal o fez, como só ele foi capaz:
 
Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!
 
Dos seus passeios pelo campo – possivelmente, inspirado pela observação da vida campestre dos seus tempos em Linda-a-Pastora, onde o pai possuía a granja que lhe serviu de refúgio quando sentiu os primeiros achaques da tuberculose que o viria a vitimar  - o Poeta deixou-nos o poema De Tarde que é uma referência ao seu lirismo puro, servido por um encadeamento perfeito das ideias e das palavras:

 
Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
 
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
 
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
 
 
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

 
No tempo de Cesário, D. Luís era o rei de Portugal. Vivia-se o Liberalismo e a Monarquia Constitucional. Vale isto por dizer que a abertura política que tantos trabalhos dera a ser conquistada, faz que ele assista em plena juventude às Conferências Democráticas do Casino (3) realizadas em 1871 – tinha Cesário 16 anos, um tempo em que a juventude se abre a novos ideais – não tendo, por isso, ficado impune ao fervor social congregado à volta do Partido Republicano e que teria gerado em Cesário um pendor pelo desejo da República,  um facto que se nota na sua poesia Deslumbramentos onde a par de se revelar o homem ardente e apaixonado pela heroína do poema, milady , de quem afirma:
 
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
 
Na parte final, porém, faz emergir o crítico deixando perceber o tempo novo – que ele não teve tempo para viver – quando, com algum desdém dá a milady  este conselho:
 
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
 
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos – as rainhas.

 
Cesário escreveu este poema em 1875.
No seu tempo no tecido social fervia a luta política. Em 1877 demitiu-se o ministério regenerador de Fontes Pereira de Melo. Posteriormente os progressistas atacaram o rei, acusando-o de patrocinar os regeneradores. O ministério regenerador caiu, em 1879, e D. Luís chamou os progressistas a formar governo. Cesário, como aconteceu com os grandes vultos da intelectualidade portuguesa de então, não foi indiferente ao tempo que viveu e que apontava – enterrado o absolutismo – para um tempo novo, compreendendo-se, assim, as duas últimas quadras do poema Deslumbramentos.

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 (1) - José Malhoa, Silva Porto, Columbano e Rafael Bordalo Pinheiro, entre outros, dão corpo a um movimento de renovação da arte em Portugal, dando-lhe características nacionais. O Grupo reunia-se no Café Leão de Ouro, da então R. do Príncipe, actual r. 1º de Dezembro. Daí o nome: Grupo do Leão.


(2)  - O vocábulo deriva de “Parnaso” monte da antiga Grécia, consagrado a Apolo, deus da poesia e às musas. Como designação de escola literária, deve a sua origem ao título da publicação francesa” Le Parnasse Contemporain” (1866) na qual se publicaram as primeira obras poéticas que reagiram contra o Romantismo, voltando-se o poeta para o mundo exterior, expondo os temas com realidade e sem sentimentalismos.

(3) - O grupo de intelectuais  que participou em Coimbra na “Questão Coimbrâ”, acabados os seus cursos reuniiu-se de novo em Lisboa, tendo-se agregado a Antero de Quental, Eça de Queirós, Teófilo Braga e Ramalho Ortigão, Jaime Batalha Reis, Salomão Saragga, Adolfo Coelho, Augusto Soromenho, entre outros, formando o “Cenáculo” que foi interventivo nas chan´madas Conferências, realizadas no Casino Lisbonense, situado no Largo da Abegoaria.

António Sardinha (1887-1925)





António Maria de Sousa Sardinha nasceu em Monforte do Alentejo em 9 de Setembro de 1887 e faleceu em Elvas, a 10 de Janeiro de 1925, quando contava apenas 38 anos.
Poeta inspirado e político, destacou-se como ensaísta, polemista e doutrinador.
Foi pela mão de Eugénio de Castro que António Sardinha publicou os seus primeiros poemas. Tinha15 anos, assinando-os com o nome de António de Monforte.
Em 1911 concluiu  na Universidade de Coimbra a sua formatura em Direito.
Tendo no decorrer da vida académica sido um fervoroso republicano após a implantação da República operou-se no seu espírito uma profunda desilusão com o novo regime surgido da Revolução de Outubro.
Passou a ser um crítico da República, por motivos que os próprios republicanos lhe serviram, dado o desnorte e falta de ética política do novo regime.
Convertido ao Catolicismo, teceu frases de um grande fervor espiritual como estas:
Todo me curvo, todo eu beijo o chão, mais humilde que os bichos da terra... Mas o Senhor foi para a minha aridez como a chuva da tarde pelo estio, eu sou um homem de boa vontade, confio, aguardo, não serei confundido eternamente. «Só os pagãos é que não têm esperança!» diz a letra admirável do Ofício de Defuntos. E em frente do momento em que Cristo não tarda a repousar eu recito o versículo sublime: «A minha carne descansará na esperança, ao lado do Senhor meu Deus dormirei em paz».
Desfeito o ideal republicano da era estudantil, seguiu-se a conversão aos ideais monárquicos, tendo-se aproximado de Hipólito Raposo, Alberto de Monsaraz, Luís de Almeida Braga e Pequito Rebelo, com os quais fundou  a revista Nação Portuguesa, publicação de filosofia política que deu aso ao lançamento do movimento político-cultural denominado "Integralismo Lusitano" em defesa de uma "monarquia tradicional, orgânica, anti-parlamentar". (1)
António Sardinha bem cedo se viria a destacar no seio do grupo pela força do seu verbo.
A passagem das Letras à Política consumou-se em 1915, ano que publica o livro Epopeia da Planície, de onde se destaca o soneto Letreiro, que é um hino de amor à raça do sangue antigo e uma homenagem emocionada aos lavradores alentejanos que lhe haviam moldado a alma:
Tudo o que sou o sou por obra e graça
da comoção rural que está comigo.
Foi a virtude lírica da Raça
a herança que eu herdei do sangue antigo.
 
Foi esta voz que em minhas veias passa
e atrás da qual, maravilhado eu sigo.
Como um licor de encanto numa taça,
assim se quer esse condão comigo.
 
Olhai-me: – Eu vim de honrados lavradores.
De avós e netos, sempre os meus Maiores
fitaram o horizonte que hoje eu fito.
«O que estaria além da curva estreita?»
– E da pergunta, a cada instante feita.
nasceu em mim a ânsia p’ró Infinito.

 
Nesse mesmo ano pronuncia na Liga Naval de Lisboa uma conferência onde alertava para o perigo de uma absorção da Pátria pelos espanhóis, com a alma posta na degradação dos costumes que a República – como entendia - havia trazido à vida portuguesa.
Durante o breve consulado de Sidónio Pais, foi eleito deputado na lista da minoria monárquica. Em 1919, exilou-se em Espanha após a sua participação na fracassada tentativa restauracionista da Monarquia, movimento que ficou conhecido pela  "Monarquia do Norte". (2)
Ao regressar a Portugal, cerca de dois anos e meio, depois, publica  Quando as Nascentes Despertam, onde a alma do povo se espelha nessa formosa composição: Versos do Trinco da Porta, no modo como então era uso, ter-se a porta franqueada, fosse a quem fosse:
 
Versos do trinco da porta,
- Louvado seja o Senhor!
A casa é Deus quem a guarda,
Ninguém a guarda melhor!
 
Batem os pobres à porta,
- Batem com ar de humildade.
“Eu sei que é pouco irmãozinho!
É pouco, mas de vontade!”
 
...................................................
Mexem no trinco da porta.
“Levante, faça favor!”
A entrada nunca se nega
Seja a visita quem for!
 
Por esse tempo, tornou-se Director do diário A Monarquia onde veio a desenvolver um intenso combate em defesa da filosofia e sociologia política e onde se afirma como  arauto em  defesa de um nacionalismo monárquico, empresa que lhe consumiu os restantes – e já poucos – anos de vida.
Em 1922 publica mais um livro de poemas: Na Corte da Saudade, onde o seu acrisolado amor à terra portuguesa lhe inspirou o lindo soneto Memória, de louvor à saudade, esse sentimento tão nosso, tão português:
 
Meu coração de lusitano antigo
bateu às portas de Toledo, a estranha.
Mais roto e ensanguentado que um mendigo.
só a saudade as passos lhe acompanha.
 
Pois a saudade ali me deu abrigo.
ao pé do Tejo que a Toledo banha.
Levava os dias a falar comigo,
como um pastor com outro na montanha.
 
Em todo o mundo há terra portuguesa,
desde que a alma a tenha na lembrança
e a sirva sempre com fervor igual.
 
Talvez por isso, em horas de tristeza,
eu pude à sua amada semelhança
criar pra mim um novo Portugal!

 
Dois anos, antes de morrer, mais um livro: Chuva da Tarde. É um livro de despedida, que nos dá conta, no soneto Velho Motivo de uma certa mágoa do Poeta, que, inspirado por Camões, deixa transparecer – como sendo a sua dor superior è de Jacob, que não tendo conquistado a sua amada Raquel, ainda assim a via -  ao contrário dele.
António Sardinha, revela-se um lírico de fina água:
 
Soneto de Jacob, pastor antigo,
– soneto de Raquel, serrana bela...
Oh! quantas vezes o relembro e digo,
pensando em ti, como se foras Ela!
 
O que eu servira para viver contigo,
– tão doce, tão airosa e tão singela!
Assim, distante do teu rosto amigo,
em torturar-me a ausência se desvela!
 
E vou sofrendo a minha pena amarga,
– pena que não me deixa nem me larga,
bem mais cruel que a de Jacob pastor!
 
Raquel não era dele, e sempre a via,
enquanto que eu não vejo, noite e dia,
aquela que me tem por seu senhor!

 
E do mesmo livro, na história da poesia portuguesa hão-de ficar para sempre os versos desse soneto admirável e encantador: No Deserto, enquanto hino de amor pintado num quadro asiático de uma beleza ímpar e imorredoira:
 
Chegaram os camelos junto ao poço,
Quando Rebeca tinha a urna cheia.
Foram momentos esses de alvoroço,
Bem raros de encontrar em terra alheia.
 
Também meu coração, menino moço,
Nos cardos do caminho se golpeia.
Ouço-te os passos, dentro de alma eu ouço
O eco dos teus passos sobre a areia.
 
Busquei-te no deserto longamente...
Como Rebeca outrora, condoída,
Surgiste, calma, na poeira ardente.
 
De ânfora baixa, à boca da cisterna,
Ficaste assim, para toda a tua vida,
Matando a minha sede, que é eterna!

 
No livro publicado postumamente, Roubo da Europa (1931) António Sardinha , no final do Poema deixou-nos os seguintes versos, que parecem, hoje, quando vemos a velha Europa com receios de assumir a sua vertente histórica cristã, terem sido escritos sob um clarão de um sentimento dolorido, como que prevendo o que viria a passar-se sete décadas depois:
.........................................................................
E sigo-te as pisadas, madre Europa,
Mal reprimindo um grito em minha boca:
Não é agora o toiro quem galopa, (3)
És tu que vais em cavalgada louca!
.........................................................................
Europa! Europa! (E já te não avisto!)
Não ouves esta voz que por ti chama?!
Onde ficou o lábaro de Cristo?
Onde deixaste, Europa, a tua flama?
 
António Sardinha, é, hoje, injustamente um Poeta esquecido, porque a intelectualidade do regime não lhe perdoou o seu pendor monárquico, e aquela que situando-se distante do poder instaurado nunca teve força nem engenho para o impor, o que tem sido um erro grosseiro, porque o Poeta foi um português de alma inteira, um patriota esclarecido e motor de homens, que no seu tempo tentaram – com todo o direito que lhe provinha de serem homens livres – de restaurar a Monarquia, um ideia, que ainda hoje não morreu na alma de muitos portugueses.
Da sua obra póstuma, assinalam-se as seguintes: Era Uma Vez um Menino (1926) ; Roubo da Europa (1931) ; Pequena Casa Lusitana (1937) .
Dos Estudos e Ensaios, publicados em vida e após a sua morte, assinalam-se: O Valor da Raça (1915) Ao Princípio Era o Verbo (1924), A Aliança Peninsular (1924), A Teoria das Cortes Gerais (1924), Ao Ritmo da Ampulheta (1925), entre outros.
De vida curta, António Sardinha, foi um cultor da língua portuguesa de grande erudição, pelo que lembra a sua memória, aos mais novos, é um acto de justiça.



(1) - Em 1914, na revista Nação Portuguesa, sob a direcção de Alberto de Monsaraz, a expressão "Integralismo Lusitano" designava já um índice de soluções sob o título "monarquia tradicional, orgânica, anti-parlamentar". Tanto quanto promover o renascimento do espírito católico na alma dos portugueses, criar uma nova literatura e uma nova arte despojada do espírito romântico do século anterior, havia agora que trazer de novo à luz do dia os princípios políticos da antiga Monarquia portuguesa.
Para os integralistas, não haveria uma verdadeira regeneração portuguesa sem o retomar das suas antigas tradições políticas. A Monarquia do absolutismo Iluminista (introduzida em Portugal pelo Marquês de Pombal no século XVIII), bem como a sucedânea Monarquia da Carta (importada pelos liberais de novecentos), tinham sido estrangeirismos descaracterizadores, responsáveis pela subversão dos princípios democráticos e populares da antiga Monarquia.
Se bem que os integralistas recuperassem o espírito dos Vencidos da Vida ao defenderem o imperativo regeneracionista de um "reaportuguesamento de Portugal", iam agora mais fundo: era necessário recuperar o antigo pensamento político português que, do mesmo passo, reconhecera os foros e liberdades  da República (das comunas urbanas, dos concelhos rurais, etc.), estabelecera as regras da sua representação em Cortes e definira o conteúdo dos pactos que os Reis, sob pena de Deposição, juravam respeitar.
E foi em torno desse princípio orientador - "reaportuguesar Portugal" - que um grupo de jovens monárquicos, que não se reconheciam na Monarquia deposta — como Hipólito Raposo, Luís de Almeida Braga, José Pequito Rebelo —, se reuniu com um grupo de republicanos entretanto convertidos ao monarquismo por se não reconhecerem na República recém-implantada — António Sardinha, João do Amaral, Domingos Garcia Pulido, entre outros.
(2)  - A “Monarquia do Norte” teve os primeiros passos  a 3 de Janeiro de 1919 com o Manifesto da Junta Militar do Norte, sediada no Porto, autoproclamando-se representante da herança sidonista.
A 19 de Janeiro é proclamada a Monarquia no Porto (e também em Lisboa). É declarado o estado de sítio em todo o continente. No entanto a proclamação é efémera (a 24 de Janeiro a revolta é subjugada no Sul), embora o Norte tenha resistido até 13 de Fevereiro, tendo mesmo sido criada uma Junta Governativa do Reino chefiada por Paiva Couceiro. A 13 de Fevereiro, após combates em todo o litoral centro, a guerra civil termina com a entrada dos republicanos no Porto.
      (3) - Na Mitologia, Europa é filha de Argenor, rei da Fenícia e irmã de Cadmo. Era de tal modo formosa que se dizia ter recebido um púcaro com os arrebiques de Juno. Júpiter, por ela perdidamente apaixonado, tomou a figura de um touro e tendo-a roubado, atravessou o mar e levando Europa no dorso trouxe-a para a parte do mundo a que deu o seu nome. Esta é a lenda da formação da Europa. Camões faz menção deste episódio da Mitologia, no Canto II, estrofe 72, quando relata a chegada de Vasco da Gama a Melinde:

                                                                                          Era no tempo alegre, quando entrava 
                                                                                          No roubador de Europa a luz Febeia,

entendendo-se por “Febeia” a luz do Sol, de Febo (brilhante) ou seja, Apolo, que era identificado como Sol no ciclo das estações do ano, constituindo a sua mais importante caracterização no mundo helénico.