A afirmação "há mais vida para além do défice" foi uma forma enviesada de transpor para a opinião pública aquilo que não foi dito pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio no Parlamento, em 2003, por ocasião da cerimónia do 25 de Abril, quando, na realidade o que foi dito é assim: "há mais vida para além do orçamento", pelo que - não tendo eu qualquer incumbência de repor a verdade que não seja a mim mesmo e a quem me queira ler - aqui fica o discurso do PR, na íntegra com sublinhado meu no local onde está aquela frase.
Penso que, para bem da verdade se devem por - como se diz "os pontos nos ii" - que a tanto devíamos ser obrigados por uma questão de não se deixar envenenar o cenário político, neste momento em que vemos António Costa com todo o afã a controlar a despesa pública para que o défice não dispare - algo de que discordo - porque não pagar o Estado a quem deve a tempo e horas é uma má prática, porque o exemplo - doa a quem doer - tem de vir de cima.
E é, por ouvir que aquela frase de Jorge Sampaio - distorcida - que agora começa a aparecer "há mais vida para além do défice", a bem da verdade, me leva a não tirar proveito dela, embora me pareça que o governo actual bem merecia que lhe fosse lembrado que há mais vida para além do défice, tendo em conta o que está a fazer.
Mas eu não o faço e, logo, não entro neste jogo de atribuir a Jorge Sampaio uma frase que ele não disse e, portanto, se há que criticar o governo de António Costa pelo seu apegado apelo ao cumprimento do défice, parecendo esquecer que há vida para além daquela meta económica, eu jamais o criticarei apegando-lhe uma frase que não foi assim pronunciada.
Discurso integral do PR em 2003 com o parágrafo em causa transcrito em letra mais grada.
Discurso do Presidente da
República por ocasião da Sessão Comemorativa do 25 de Abril
Assembleia da República
25 de Abril de 2003
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores Embaixadores,
Ilustres Convidados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Ao renovar as minhas saudações à
Assembleia da República, neste Dia da Liberdade em que evocamos a data
fundadora do nosso regime democrático, quero partilhar convosco e, na vossa
presença, com os portugueses, a minha reflexão activa e empenhada sobre a hora
presente, que, como todos reconhecemos, se apresenta singularmente difícil,
complexa e muito exigente. Mergulhados numa crise internacional, de que
compreendemos a gravidade, mas de que mal adivinhamos ainda a extensão das suas
consequências e perigos, é como se ela nos expusesse mais às nossas próprias
fragilidades e carências, revelando-as por inteiro. Sentimos que, aos problemas
que conhecemos e vivemos, muitos deles há demasiado tempo, se juntam agora
novos problemas e novos desafios.
Esta situação, feita de velhos
obstáculos e de novas dificuldades, dá-nos a amarga percepção de nos
encontramos mais vulneráveis e mais indefesos para enfrentar o futuro. E deve
dar-nos também a consciência, uma maior e mais aguda consciência plenamente
assumida, de que o tempo corre contra nós, de que não o podemos perder,
desperdiçar ou ignorar a sua passagem veloz e desafiadora. É nos momentos de crise
que tudo se reabre: surgem, certamente, riscos e ameaças, mas também se oferece
uma grande oportunidade de, desfazendo ilusões e enganos, nos reencontrarmos
verdadeiramente connosco, com a nossa vontade e com a nossa ambição – uma
vontade mais estável e uma ambição mais lúcida.
É nos momentos de dificuldade que
devemos recusar a facilidade. É nos momentos de desafio que o pessimismo e o
fatalismo têm de ser contrariados, quer nas suas faces mais tradicionais, as da
resignação e da desistência, quer nas suas faces mais perversas, que são as da
desresponsabilização, da incúria, da inércia, do incumprimento e do laxismo. É
nos momentos de encruzilhada que é preciso ter a coragem de escolher o caminho,
de afirmar responsabilidades, de agir consequentemente, de ir ao fundo dos
problemas para os enfrentar e resolver, abandonando de vez aquela atitude que
nos leva a falar muito das dificuldades, como se, em vez de falar delas, não
tivéssemos o dever de as ultrapassar.
Que fique claro: no plano que ao
Presidente da República compete, eu não me excluo, nunca me excluí, de dar um
contributo constante e activo à resolução dos problemas. Pelo contrário! É
nesse sentido que entendo e pratico a cooperação institucional com todos os
outros órgãos de soberania. É a essa luz que tudo faço para dar maior coesão ao
país, estimular as energias da sociedade, mobilizar os portugueses. Mas não há
acção política digna desse nome se não houver metas de exigência e objectivos
claros de médio e longo prazo. Compete ao Presidente da República tornar
presentes essas metas de exigência e esses grandes objectivos. Compete-lhe
também avaliar se se está no bom caminho para os alcançar, pois é nisso que se
traduz o desígnio para o país de que o Presidente é portador e em nome da qual
foi eleito directamente pelos portugueses. É fundado neste entendimento da
minha função, que vos dirijo as palavras de hoje – palavras de preocupação, não
vos escondo, mas também palavras de estímulo, de responsabilização e de
confiança.
Por considerar que são esses os
temas que exigem mais atenção na hora presente, vou falar-vos da crise
internacional em que vivemos e dos problemas que ela nos põe, enquanto
portugueses, europeus e cidadãos de um mundo globalizado; da situação económica
e social do nosso país, pois nela se medem os resultados e os méritos das
nossas políticas; e, finalmente, do Estado de direito e da necessidade de o
aperfeiçoarmos para termos uma democracia de melhor qualidade.
Senhor Presidente, Senhores
Deputados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Como disse, celebramos o 25 de
Abril num momento em que a situação internacional nos motiva novas apreensões,
nos põe novos problemas e nos exige novas responsabilidades. O século XXI
começou mal, ao não cumprir as expectativas de paz e de progresso humano que o
render dos milénios sempre faz nascer no coração dos homens. O terrorismo e a
guerra marcaram tragicamente este início. Retiremos ao menos da experiência da
tragédia os ensinamentos necessários para que permaneça firme a esperança em
dias melhores.
O conflito do Iraque rasgou já
parte do mapa de entendimentos, construções jurídicas internacionais e até de
alianças estabelecidas após a Segunda Guerra Mundial, pondo a nu a debilidade
de Organizações e dos seus códigos normativos. Em paralelo, revelou a
dificuldade de reajustamento das respectivas estruturas perante a nova
distribuição de poder entre os Estados e face aos inéditos problemas políticos,
económicos, culturais e religiosos que caracterizam o nosso tempo.
Reconhecemo-nos mais vulneráveis, até porque sabemos globais e difusas as novas
ameaças decorrentes do terrorismo internacional, da proliferação de armas de
destruição maciça, da criminalidade organizada, das crispações sociais,
culturais e religiosas, do enfraquecimento de diversos valores estruturantes da
sociedade e do progresso humano.
Há um sentimento de inquieta
precariedade que atravessa países e povos e atinge também Portugal. A esse
respeito, a rara amplitude das várias iniciativas pela paz que tiveram lugar no
nosso país e a diversidade da sua composição têm um significado político,
social e cultural que não pode ser ignorado. Talvez mais do que qualquer crise
internacional anterior, aquela que agora vivemos tem suscitado entre nós
extensos debates e análises. É esse um bom sintoma, um sinal de que vivemos
numa sociedade viva, democrática, plural e participativa. No mundo global em
que vivemos tudo respeita a todos, não devendo nenhum país alhear-se do que
acontece e também lhe diz respeito. Para Portugal, é imperativo não se alhear
deste processo de múltiplas recomposições da Ordem Internacional, que abarcará
tanto a ONU como a União Europeia e a OTAN, pois em qualquer delas tem
interesses próprios a defender. Se não o fizermos, outros o farão por nós – e
não decerto em nosso benefício.
Os portugueses conhecem a minha
posição sobre as condições em que foi lançada a ofensiva militar contra o
Iraque. Findo o conflito, derrubada uma odiosa ditadura, esperemos que, a
partir de agora, se procure repor e reforçar o papel das Nações Unidas, na
consciência de que nunca como hoje foi tão necessária uma regulação das
relações internacionais, assente no respeito do direito, que recuse posições
hegemónicas e decisões unilaterais. Ao mesmo tempo, importa acautelar que, uma
vez estabilizada a situação de segurança e resolvidas as emergências
humanitárias, a reconstrução do Iraque – política, civil, física – se processe
na mais estrita transparência, tanto de métodos como de finalidades, sob a
égide da ONU, para que a auto-determinação e a rápida normalização do país,
protegido na sua integridade territorial, possa ser levada a cabo pelo povo
iraquiano. Faço votos de que a paz permita, finalmente, um futuro de progresso
para este país, ancorado na sua história, nas suas capacidades humanas e nas
suas vastas riquezas nacionais.
É esta também a hora em que tudo
deve ser feito para pôr termo à situação de permanente conflito entre
israelitas e palestinianos, garantindo a estes o Estado a que têm direito e
àqueles a segurança do seu viver quotidiano. Seria trágico, nomeadamente para
as relações entre o Ocidente e o mundo árabe e muçulmano, se às ruínas e
vítimas da guerra do Iraque se continuarem a somar mais escombros e mais mortos
em Nablus e Telavive. Trata-se de uma tarefa inadiável, quer no plano político
quer no moral.
Devemos interrogar-nos sobre o
lugar que pretendemos para Portugal neste mundo em mudança. Ora, na hierarquia
dos interesses portugueses, é a UE que assume a posição primeira, decisiva e
sem paralelo no plano da nossa estratégia externa. Quero reafirmar aqui tal prioridade,
sobretudo neste momento, em que se assiste a uma das recorrentes crispações
internas europeias, de antigos ou novos cepticismos.
Tal como em anteriores ocasiões,
não é esta a altura para apressados requiems. Pelo contrário! E porque nisso
estão interesses portugueses fundamentais, para além de uma fundada convicção
de projecto, deveremos pugnar para que a União assuma resolutamente esta fase
constituinte, para dar um novo fôlego à construção europeia neste dias de
crise. Não tenhamos dúvidas: o próximo Tratado poderá influenciar em larga
medida o nosso futuro colectivo, como portugueses e europeus. Importará velar
pela defesa de um modelo que proteja o método comunitário, o equilíbrio
interinstitucional, o princípio da igualdade dos Estados. Um modelo que promova
o aprofundamento das políticas de solidariedade e o estabelecimento de um
quadro de objectivos que ponham termo à debilidade da sua dimensão política,
designadamente no plano da acção externa e de defesa, cuja frágil expressão vem
hipotecando a capacidade da União de agir como actor global e de cumprir as
suas indeclináveis responsabilidades internacionais.
Um modelo que reafirme e
consolide os valores e objectivos comuns que têm inspirado esta comunidade de
destino, a saber: a defesa dos direitos fundamentais, a democracia, o direito,
a justiça social, a solidariedade, a igualdade. Um modelo que estabeleça uma
mais próxima relação com os cidadãos, procurando dar respostas às suas
crescentes inquietações e expectativas, única forma de criar essa ligação
afectiva que está na base do cimento de qualquer comunidade. Uma Europa
consolidada por um continuado desenvolvimento das suas políticas comuns, com
mais coesão económica e social, com mais capacidade competitiva, como aponta a
Estratégia de Lisboa. Importa ainda garantir um melhor espaço de segurança para
os cidadãos que nela vivem, o qual, sem dano para os valores essenciais de
liberdade, salvaguarde o progresso da abolição das fronteiras internas através
de uma reforçada cooperação policial e judiciária, de um sistema integrado de
vigilância das fronteiras externas, ou de uma realista aproximação do direito
penal europeu.
Reitero a nossa convicção
europeísta e quero saudar com esperança os dez novos países que se juntaram a
nós há pouco neste grande projecto comum, hoje aqui tão simbolicamente
representados pelos Presidentes dos seus Parlamentos. Reitero esta convicção
não apenas para recordar uma conhecida posição pessoal, mas para reafirmar o
que, desde os anos oitenta, constitui um património político do Estado
português. Sublinho-a, porque a participação activa de Portugal no actual
momento de construção europeia deverá mostrar aos nossos parceiros que a opção
da Europa é um desígnio nacional maioritariamente assumido. É nesta comunidade
de destino que encontramos os necessários apoios, mecanismos e solidariedades
políticas para garantirmos a modernização do país, defendermos o progresso
económico-social, e alargarmos a nossa capacidade de projecção externa,
nomeadamente em áreas da tradicional presença portuguesa.
A crise do Iraque decerto
obrigará a reequacionar o papel da Aliança Atlântica suscitando, porventura,
decisões delicadas sobre a extensão das responsabilidades geográficas de uma
diferente OTAN. A Aliança Atlântica continua porém a desempenhar um papel
central no quadro da defesa e segurança da Europa. É uma aliança antes de mais
defensiva, com um papel importante na manutenção da paz e da segurança
internacionais, que deve ser cumprido com a crescente colaboração da União Europeia.
A Aliança Atlântica não é, no entanto, uma caixa de ferramentas que possamos
utilizar em qualquer circunstância sob pena de podermos minar a sua solidez.
A União Europeia deve assumir, em
articulação com a OTAN, crescentes responsabilidades no domínio da defesa, em
particular nas tarefas de manutenção da paz e da segurança no nosso continente.
É importante que sejam fixados novos objectivos concretos à política de defesa
europeia. Não se trata apenas de colmatar conhecidas lacunas. Trata-se, também,
de definir um projecto que permita à União progredir gradualmente, mas com
passos firmes, em direcção a uma capacidade autónoma de defesa que melhor
garanta a paz.
Repito: a UE não pode falhar este
seu encontro com a História. Os problemas decorrentes da presente conjuntura
geopolitica colocam aos responsáveis europeus uma escolha clara: ou dotar a
União de objectivos e instrumentos que lhe confiram uma efectiva capacidade de
influência diplomática global, ou confiná-la a um estatuto regional. Ora, o progresso,
a estabilidade, o equilíbrio do mundo necessitam de uma UE forte, sustentada
por instituições sólidas, uma Europa reforçada por um indispensável pensamento
estratégico que aproveite as várias experiências nacionais para lançar as bases
de uma diplomacia externa interventiva, respaldada por uma adequada política de
defesa.
É, aliás, possível – e os debates
na Convenção parecem mostrá-lo – elaborar programas comuns que permitam agir
com eficácia na gestão de crises, na prevenção de conflitos, na estabilização
de situações. Sem atropelos de competências com a OTAN, mas antes melhorando
colaborações e entendimentos, seria erro não aproveitar este momento de
renovação do Tratado para finalmente se lançarem as bases adequadas de uma
política comum de defesa, sustentada por um roteiro de objectivos e
instrumentos (a sempre anunciada agência de armamentos seria um primeiro sinal
concreto) que favoreçam o estabelecimento de capacidades militares autónomas,
designadamente no campo da projecção de forças ou no domínio da informação,
indispensáveis para agir – e ser credível.
Pretendemos uma Europa que não se
esgote, no plano da sua política externa, na insuficiência declaratória e
reactiva. Há, por isso, que assentá-la numa diferente vontade política que
saiba identificar os interesses estratégicos europeus e adoptar os métodos para
os cumprir.
Nenhum Estado-Nação poderá
isoladamente fazer face à globalização dos problemas e aos desafios
diversificados que dela decorrem. Portugal, país tradicionalmente aberto ao
exterior e dele retirando garantias de independência, deverá assim saber, sem
angelismos e com determinação, assegurar a sua presença nos núcleos avançados
de decisão que tenderão a formar-se na futura Europa alargada.
Em democracia, deve haver uma avaliação
permanente do interesse nacional que não é propriedade exclusiva de ninguém.
Sem essa avaliação, os compromissos são ocos e superficiais. Mas isso não obsta
a reconhecermos que a capacidade de acção internacional do Estado se reforça
com a solidez e autenticidade dos consensos internos sobre as políticas
externas, justificando o nosso empenho colectivo para definir linhas de
orientação coerentes e duradouras.
Senhor Presidente, Senhores
Deputados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Falo-vos agora da situação
económica e financeira do País. O actual abrandamento da economia portuguesa
veio dar destaque a problemas estruturais há muito diagnosticados e revelou
novas vulnerabilidades, resultantes, em parte, da dificuldade em lidar com a
intensificação da concorrência em mercados cada vez mais globalizados. A
palavra "deslocalização" – pronunciada como se de uma fatalidade se
tratasse – é cada vez mais utilizada para justificar o despedimento, sem
pré-aviso nem justa causa, de milhares de pessoas, e não raramente somos
convidados a um encolher de ombros perante a situação, com o argumento de que
tudo não passa de um efeito da "globalização", também ela inevitável,
também ela irreversível.
Reconhecer os problemas não
significa, muito pelo contrário!, abdicar de pensar em meios adequados para os
enfrentar. Alguns desses meios continuam a situar-se no quadro das políticas
económicas e sociais de âmbito eminentemente nacional.
No contexto internacional, julgo
que só uma perspectiva assumidamente reformista pode ser uma via possível de
abordagem deste problema, que exige mais cooperação e mais regulação à escala
supranacional. Regulação ao nível dos mercados financeiros, para combater
excessos especulativos que, quando entregues a si mesmos, podem penalizar
injustamente grupos sociais e povos já desfavorecidos; regulação ao nível dos
sistemas e mercados de emprego, pondo fim a velhas e novas formas de exploração
do trabalho contrárias à dignidade humana; regulação ao nível de equilíbrios
ambientais que salvaguardem interesses vitais das gerações futuras; regulação
ao nível dos fluxos informacionais, tentando evitar que o seu potencial
universalista seja posto ao serviço da força bruta e de interesses particulares
ilegítimos.
Portugal, uma pequena economia
aberta, tem interesse directo em participar activamente em todas as iniciativas
que contribuam para regular as relações económicas internacionais. E, desde
logo, a nível europeu, lutando para que se aperfeiçoem e concretizem princípios
e normas impeditivos de manifestações brutais de desregulação como as que
permitem transferir, de um dia para o outro, recursos e postos de trabalho –
tantas vezes criados com apoios comunitários - de países onde vigoram direitos
sociais duramente conquistados para países onde tais direitos continuam a ser
negados às populações.
Sem essa regulação e sem essas
regras, é um mundo sem Lei que estamos a construir – e, como a história nos
ensina, isso é abrir a porta a todos os perigos e a todas as ameaças.
Senhor Presidente, Senhores
Deputados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores
A década de oitenta do século que
há pouco findou ficou marcada, em muitos países da Europa Ocidental, por
concepções e políticas defensoras de um recuo generalizado da presença do
Estado na vida económica e social, apresentado então como uma nova receita
infalível ou um novo dogma, que se apresentava em oposição ao dogma da
estatização.
O tempo correu e a avaliação dos
vários efeitos negativos de tal orientação sobre as condições de equidade e
protecção sociais suscitou, ao longo do decénio passado, uma inflexão da acção
política no sentido de assegurar que a transferência para a gestão privada de
actividades antes confiada ao Estado decorresse no quadro de regras públicas
respeitadoras do interesse geral das populações.
A questão está na ordem do dia em
Portugal e é, e continuará a ser, de decisiva importância no futuro do
desenvolvimento português e nas suas características fundamentais. Aceita-se
que, por razões de eficiência económica e de controle da despesa pública, haja
uma redução do papel prestador do Estado; mas também se sustenta que continue a
pertencer ao Estado, através de códigos de regulação devidamente explicitados,
e de uma acção fiscalizadora eficaz, a responsabilidade última pela defesa do
interesse geral.
Tenho defendido ser crucial que a
transferência de algumas funções do Estado para privados seja conduzida segundo
princípios definidos com transparência e de acordo com procedimentos
tecnicamente fundamentados e testados com o rigor e a seriedade requeridos pela
defesa do interesse público. Entendo que, se assim não acontecer, é grande o
risco de essa transferência vir a gerar custos sociais e económicos altamente
gravosos, sobretudo para as populações mais frágeis, ainda que, no curto prazo,
ela permita alcançar ganhos financeiros e políticos apetecíveis. Foi esta a
perspectiva que adoptei ao apreciar o diploma sobre a Rede de Cuidados de Saúde
Primários, o qual só entrará em vigor quando for aprovada a criação de uma entidade
reguladora que enquadre a participação dos operadores privados e sociais no
âmbito da prestação de serviços públicos.
Parece-me, por outro lado,
indispensável que a Administração Pública se abra à inovação de forma a
responder às expectativas dos cidadãos e a garantir que o interesse público
seja salvaguardado. De facto, nesta progressiva alteração das funções
tradicionais do Estado, ou a Administração Pública incorpora novos saberes e
novas tecnologias e reforça valores fundamentais como a confiança, a
responsabilidade, a imparcialidade, o profissionalismo e a qualidade na sua
relação com o indivíduo, a sociedade e o mercado, ou, não o fazendo, a sua
falta de capacidade reguladora trará consigo novas e mais dramáticas
injustiças, ficando o Estado dependente de interesses privados ou sectoriais,
quase sempre não coincidentes com o interesse público.
No tempo actual, aos Governos não
se colocam apenas os desafios decorrentes da necessidade de aperfeiçoamento das
funções de intervenção reguladora do Estado. Aos Governos, hoje, pede-se mais e
melhor. Pede-se que seja capaz de uma visão estratégica de longo prazo e da
capacidade de acção correspondente. Posto perante lógicas de mercado, em grande
parte não reguladas e que cada vez mais ultrapassam as fronteiras nacionais,
não pode o Estado – sobretudo em sociedades com múltiplas fragilidades
estruturais, como é o nosso caso – abdicar de uma ambição forte, quer em
matéria de reposicionamento estratégico da economia nacional, quer em matéria
de construção de uma rede sustentada de protecção social para os cidadãos mais
vulneráveis.
Factos recentes da nossa vida
colectiva, como os que se têm traduzido por um acréscimo repentino do
desemprego, são bem reveladores das responsabilidades e exigências estratégicas
que, nos dois eixos enunciados, se colocam às políticas públicas. Começo pelo
segundo. É indispensável estabilizar patamares generalizados de protecção dos
cidadãos, de forma a prevenir e atenuar, tanto quanto possível, quer o
sofrimento das pessoas mais expostas aos riscos, quer os próprios níveis de
conflitualidade social. Nada menos aconselhável a este respeito do que provocar
roturas forçadas em relação a consensos laboriosamente conseguidos ou a
políticas anteriores testadas com êxito – o assunto é demasiado delicado para
se compadecer com demarcações ideológicas excessivas ou com experimentalismos
de eficácia duvidosa, como se, para inovar em política, tudo tivesse sempre de
ser mudado ou se tivesse de recomeçar do zero.
Quanto à intervenção estratégica
do Estado, esta tem de começar por exigir uma antecipação prudente dos cenários
dentro dos quais se poderá processar o desenvolvimento empresarial e a criação
de emprego no País. Garantir condições para o incremento da competitividade ou
para a reestruturação atempada de certos sectores de actividade especialmente
expostos à concorrência externa não pode ser considerado, como alguns ideólogos
da não-intervenção sugerem, como uma intrusão desnecessária e perniciosa do
Estado na vida económica. Em Países da União Europeia com estruturas produtivas
bem mais sólidas do que as nossas, esse tipo de actuação é correntemente
assumido de forma descomplexada, com vantagens visíveis.
É inquestionável que o Estado
deve intervir em domínios tais como o do incentivo e apoio à inovação
tecnológica e à formação continuada de recursos humanos. Com graves défices
acumulados nesta matéria, custa a aceitar que sejam tão tímidos ainda os resultados
obtidos. Como também não se compreende que os esforços feitos por sucessivos
governos na definição do quadro institucional enquadrador deste tipo de
intervenção possam ser postos em causa sempre que ocorre uma mudança política.
Mais uma vez insisto nas vantagens de uma cultura de continuidade e
amadurecimento relativamente a uma cultura da demarcação, tantas vezes
meramente artificial, nominalista e quase ritual. Isto é tanto mais de
sublinhar quando, muitas vezes e infelizmente, o que tem continuidade são
apenas as más práticas.
Senhor Presidente e Senhores
Deputados
Minhas Senhoras e meus Senhores
Mudar o estado actual da economia
portuguesa é um desafio incontornável e urgente. Vivemos não apenas uma mera
crise conjuntural, agravada pela situação internacional, mas também uma crise
estrutural, que se reflecte nos défices acumulados da balança de transacções e
no substancial aumento do endividamento externo do País. Temos de encarar de
frente e com determinação os problemas de fundo da economia portuguesa, olhando
menos para o passado e mais para o futuro. A retoma da economia portuguesa,
para ser sustentada, tem de assentar na confiança dos portugueses, num projecto
mobilizador e em boas políticas públicas.
A necessidade de controlar as
finanças públicas – condição da nossa credibilidade externa – é uma obrigação
fundamental que requer medidas estruturais e não se faz apenas com medidas
excepcionais irrepetíveis nem com uma redução aparente do défice público. Mas
esta exigência de consolidação orçamental duradoura não pode fazer esquecer a
preocupação com a grave estagnação da actividade económica e o aumento do
desemprego. É por isso que a política económica global não pode estar só
centrada nas finanças públicas. Tem que dar corpo a uma estratégia de
desenvolvimento económico e social capaz de assegurar o investimento, construir
uma economia mais competitiva e uma sociedade mais solidária. O saldo
orçamental é um instrumento e uma responsabilidade fundamental, mas não é o
objectivo final da política económica. A margem de manobra da política
orçamental é relativamente estreita, mas é possível alargá-la através, por
exemplo, da reforma da Administração Pública, do combate à evasão fiscal e do
recurso a parcerias entre os sectores público e privado.
É indispensável reformar a
Administração Pública, não só para racionalizar e controlar a despesa, mas
também para aumentar a eficiência da economia e o bem estar dos cidadãos. Não
reformaremos, porém, a Administração Pública enunciando apenas a sua necessidade.
É preciso ir sempre alterando e corrigindo o que está mal; muitas vezes, até
nem são precisas grandes alterações legislativas. Se, por exemplo, os padrões
de competência profissional prevalecessem, nas nomeações e promoções, sobre
quaisquer outros e se as remunerações reflectissem o mérito no desempenho das
funções, estaríamos certamente a melhorar, de forma significativa, a eficiência
e qualidade. Como tenho incessantemente repetido, a luta contra a fuga ao fisco
também é fundamental, quer para aumentar a base tributária e as receitas
fiscais, quer para impedir o sentimento de injustiça provocado pela evasão
fiscal, um sentimento que corrói o comportamento cívico dos cidadãos e
enfraquece a coesão nacional ao não assegurar o princípio da igualdade dos cidadãos
perante a Lei. O combate à evasão e fraude fiscais tem de ser prosseguido sem
contemplações. Esse combate cabe antes de mais ao Governo. Mas os cidadãos
também podem e devem colaborar, cumprindo os seus deveres e exigindo aos outros
que também os cumpram.
A Resolução da Assembleia da
República sobre o Programa de Estabilidade e Crescimento para o período
2003-2006, aprovada no início do ano, define orientações úteis para a solução
do problema orçamental assente numa programação financeira plurianual e no
contexto de uma estratégia de desenvolvimento económico e social a médio prazo.
Essas recomendações não podem ficar como simples intenções. Têm de ter
consequências, quanto mais não seja porque são necessárias para a solução dos
problemas económicos e sociais do País. E ninguém melhor do que os Senhores
Deputados para tirar as consequências das referidas recomendações, quer porque
as mesmas foram aprovadas nesta Câmara por larga maioria, quer porque em parte
respeitam a matéria da competência exclusiva da Assembleia da República.
O debate de política geral sobre
a orientação da despesa pública, previsto, na Lei de Estabilidade Orçamental,
para o próximo mês, será uma boa ocasião para centrar a discussão parlamentar
nestas questões tão importantes e começar a dar corpo às recomendações da
Resolução. Estou certo de que os Senhores Deputados aproveitarão a oportunidade
para discutir a fundo, e numa perspectiva de médio prazo, a política económica
e financeira de Portugal. Seria igualmente importante que essa política, ou
algumas das suas componentes, pudesse beneficiar de uma base de apoio alargada.
Seria também um bom serviço prestado ao País.
Mas como já disse, o problema orçamental da economia portuguesa,
merecendo embora exigente e necessária atenção, não é o único. Há mais vida
para além do orçamento. A economia é mais do que finanças públicas. O aumento
do investimento, da produtividade e da competitividade da economia portuguesa é
fundamental para o nosso futuro e requer o esforço continuado e empenhado de
todos: governantes, empresários e trabalhadores. Uma economia competitiva não é
a que se baseia em baixos salários, mas sim a que dispõe de um sistema
produtivo moderno, inovador e tecnologicamente avançado, capaz de produzir bens
e serviços de qualidade e bem valorizados nos mercados internacionais. Foi isso
que quis sublinhar com a jornada que estou a realizar sobre a Inovação.
Temos de ter uma mão-de-obra mais
instruída e qualificada para poder desempenhar tarefas mais sofisticados e
produzir bens e serviços com mais valor acrescentado. A produtividade também
depende da inovação em sentido amplo, designadamente na organização do
trabalho, na diferenciação e qualidade dos produtos e na estratégia de
comercialização. Repito: o que conta não é a mão de obra barata, mas sim a
qualificação dos recursos humanos, a sua cultura e formação técnica.
Temos de continuar, por isso, a
investir nas pessoas. Este é o nosso maior desafio. Esta é uma responsabilidade
do Estado, mas também das próprias pessoas, a quem se pede uma vontade
permanente para aprender ao longo da vida, e das empresas e restantes
organizações, que não devem descurar a valorização do seu activo mais precioso:
aqueles que nelas trabalham. A nossa educação tem de ter mais qualidade e produzir
novas respostas à mudança dos nossos tempos. É indispensável que todos os
cidadãos e profissionais possuam uma maior cultura científica e tecnológica sem
a qual não se pode compreender o mundo em que vivemos e, muito menos, nele
actuar conscientemente. Só assim poderemos fazer da Sociedade de Informação uma
sociedade onde efectivamente todos tenham livre acesso ao conhecimento e à
comunicação.
Podemos registar como um bom
sinal a visibilidade que a ciência já alcançou em Portugal. Temos de continuar
particularmente atentos a esta questão, para que os ganhos conquistados se
consolidem e não possam vir a ser postos em causa, por forma a servirem para o
lançamento de políticas dinâmicas de educação e de inovação. Demos passos
consideráveis em pouco mais de uma década, mas ainda temos um longo caminho a
percorrer.
O papel dos empresários é, também
e como é óbvio, fundamental para aumentar a produtividade e a competitividade
da economia. Precisamos de mais e melhores empresários. Precisamos de
empresários com visão estratégica, com espírito de liderança e com capacidade
de organização e de gestão das empresas. Precisamos de empresários inovadores
nos produtos e nos processos de fabrico, capazes de organizarem e motivarem os
trabalhadores. Só empresas inovadoras, tecnologicamente avançadas e eficientes
podem pagar salários que se vão aproximando dos níveis europeus e permanecerem
suficientemente competitivas no mercado global. Precisamos também de empresas e
empresários que assumam a responsabilidade social que lhe compete prestando a
devida atenção às questões do desenvolvimento sustentável, nomeadamente ao
ambiente e à coesão social, e cultivando uma atitude ética socialmente
responsável nas relações com os trabalhadores e com a sociedade em geral.
Precisamos de empresas
economicamente competitivas, financeiramente sólidas e com accionistas e
gestores com visão. Só assim poderemos preservar o controlo de centros de
decisão estratégica para a nossa economia. Essa é uma tarefa que cabe
primordialmente às empresas e um desafio à sua capacidade para estabelecerem as
parcerias necessárias. Todavia, as regras do jogo da economia de mercado não
são apenas estritamente económicas e o Estado não pode alhear-se da questão dos
centros de decisão, recorrendo a instrumentos como a política de privatizações
ou a gestão das suas participações sociais. Onde seja estratégico assegurar uma
presença nacional relevante, deverá manter-se uma participação pública, ainda
que como mero catalisador das parcerias. O Estado não deve ter vergonha em
manter empresas com capital maioritariamente público; deve é dotar-se de
instrumentos adequados para a sua gestão.
Seria prova de ingenuidade ou
incúria se a questão dos centros de decisão não fosse tida em conta na condução
da política económica, como aliás acontece nos nossos parceiros da União
Europeia. Porém, o Estado tem de distinguir bem entre interesses particulares,
nos quais não se deve envolver, e interesse nacional, que lhe cabe defender.
Nesta perspectiva, qualquer tomada de posição ou actuação do Governo não pode
ser feita à custa da eficiência económica e do interesse dos consumidores, nem
à margem da economia aberta em que nos inserimos.
Senhor Presidente e Senhores
Deputados
Há mais de duas décadas que a
expressão "reformas estruturais" domina o léxico político português e
a generalidade dos programas de governo. Algumas se fizeram e muitas outras
ficaram por fazer ou pararam a meio. Feitas as contas, a sensação que fica é a
de que não tem existido nem uma hierarquia de prioridades clara que ordene a
sequência dessas reformas, nem uma determinação política suficiente, para
realizar, de forma profunda e consequente, aquelas que são as mais difíceis de
fazer.
Hoje, torna-se evidente que,
entre os factores que debilitam a nossa capacidade de reagir a conjunturas
adversas, avultam a insuficiente eficácia da administração de um Estado
centralista e burocrático, as vicissitudes da reforma do sistema político, as
graves consequências provocadas pelos problemas acumulados na administração da
justiça e uma insuficiente conceptualização dos papeis regulador e fiscalizador
do Estado. Não são incidentes de percurso que nos devem distrair da necessidade
de se prosseguirem os esforços de reforma do sistema político. Esta exige um
trabalho permanente, progressivo, persistente. A Comissão para a Reforma do
Sistema Político tem desenvolvido uma importante acção e quero saudá-la por
isso. O caminho já percorrido permite-nos esperar novos e mais consensualizados
desenvolvimentos neste domínio, tão decisivo para a credibilidade da democracia
portuguesa. A qualidade da nossa democracia depende, em larga medida, da nossa
capacidade para renovar o contrato entre o Estado de direito e os cidadãos,
aumentando a eficácia e a credibilidade do primeiro, a confiança e a
participação dos segundos.
A democracia, para se
revitalizar, precisa de sangue novo. A vivência democrática não deve ser
confundida com consensos artificiais ou com o desempenho meramente burocrático,
ou pior ainda, autista, dos mandatos representativos, de que só poderiam
resultar um maior afastamento entre cidadãos e eleitos e um esvaziamento das
virtualidades regeneradoras próprias do regime democrático.
O confronto vivo e clarificador
de políticas alternativas e de programas de governo é essencial à sobrevivência
e autenticidade da vida política em democracia. O que nos deve preocupar não é
a diferença de posições ou a existência assumida de divergências, mas antes o
perigo de vermos o debate político reduzido apenas a confrontações sobre o que
é acessório ou mediaticamente compensador no curto prazo.
A vitalidade da democracia exige,
por outro lado, uma atitude de cooperação institucional que passa, em primeiro
lugar, por uma compreensão rigorosa das funções que cabem a cada um, mas também
por uma assunção plena das responsabilidades próprias. Os acontecimentos mais
recentes no plano internacional e as dificuldades que atravessamos, no plano
interno, fizeram subir o tom do debate político. Nada há, nisso, de dramático,
desde que saibamos, todos, centrar a discussão sobre o que é essencial para os
interesses dos portugueses e para a posição de Portugal na Europa e no Mundo.
Nesta encruzilhada de problemas e
desafios que se põem à nossa democracia, a questão da Justiça continua a ser
motivo de grave preocupação e exigência inadiável de uma modernidade que tarda.
Sem um sistema de administração de Justiça que funcione eficazmente, não é
apenas a segurança nas ruas e a paz social que estão em causa. É a
credibilidade e a qualidade da democracia. E é toda a vida colectiva, desde o
desenvolvimento económico e social à transparência do exercício dos poderes
públicos.
É a democracia e a sua prática
quotidiana que devem firmar a ideia de que ninguém está acima da lei. É este
princípio que torna incompreensível que, por exemplo, em matéria de corrupção e
de evasão fiscal, situações cuja dimensão e gravidade já ninguém se atreve a
negar, continuem por tratar, com a eficácia necessária, as questões relativas
ao sigilo bancário e ao cruzamento de informação, com a inadmissível impunidade
que daí decorre. Esta omissão é tanto mais grave quanto continuam a não ser
tomadas, com carácter de permanência, iniciativas de investigação e de
fiscalização generalizadas, que desencorajem os corruptos e os faltosos.
Mas é preciso também que os
tribunais estejam aptos a responder em tempo aos resultados da investigação e
da fiscalização. São conhecidas as carências neste domínio. Há hoje uma
generalizada consciência das dificuldades existentes, que atravessam todo o
sistema; e estão em curso iniciativas, como é o caso do anunciado Congresso da
Justiça, de que se espera um impulso renovador. Nada, todavia, se fará de
duradouramente eficaz se agentes políticos, magistrados e advogados,
continuarem a tratar das questões da Justiça em circuito fechado, e não
correrem o risco de abrir o debate da Justiça às disciplinas que com ela se
relacionam por muito que isso possa pôr em causa rotinas e poderes instalados.
As experiências, frutuosas, em tempos iniciadas, não devem desaparecer.
Outro tema que tem merecido a
minha atenção constante por o considerar vital para o nosso futuro é o da
descentralização. Nas ultimas décadas, os territórios ganharam novas e
inesperadas competências: ensino e cultura, por exemplo, informação e
comunicação, saúde, desporto, emprego e transportes. O processo desta mudança
não está terminado. Dirão muitos, entre os quais me incluo, que precisa de ser
aprofundado. Mas, paralelamente, enfrenta hoje um duplo desafio. Primeiro:
garantir em todos eles o princípio da igualdade de oportunidades, isto é, a
equidade territorial. Segundo: promover uma boa articulação entre os diversos
níveis de competências territoriais através de uma eficaz descentralização administrativa,
que é necessário retomar.
O quadro municipal, que tem
constituído a única instância jurídico-administrativa da descentralização, é
cada vez mais reconhecido como insuficiente para responder às novas questões da
coesão e competitividade dos territórios. Novos quadros, resultantes de
aglomerações de municípios, impor-se-ão num futuro próximo. Importa que a sua
criação signifique também uma ruptura com modos de actuação em que se
privilegia o curto prazo em detrimento do desenvolvimento sustentável, a
competição com o vizinho em desfavor da cooperação, a consolidação do poder em
prejuízo da abertura à inovação, à criatividade e à partilha.
Não tenho dúvidas em estar, como
sempre estive, ao lado dos que querem novos estímulos a uma descentralização,
de que resulta necessariamente a criação de novos poderes territoriais e novos
métodos para o seu financiamento justo. Mas, atenção! É preciso que esses novos
poderes territoriais tenham em conta, em primeiro lugar, que os parceiros com
os quais se têm de articular são múltiplos, e que essa multiplicidade constitui
uma força e um enriquecimento para a cidadania e o sistema democrático. Em
segundo lugar, que o planeamento estratégico tem de se basear num sólido
inventário das condições actuais. E em terceiro lugar, que as soluções
institucionais da descentralização têm de assentar em realidades credíveis e
consensuais. Não seria admissível que, perdêssemos novas oportunidades.
Senhor Presidente, Senhores
Deputados,
Portugueses!
Neste dia, quis que as minhas
palavras reflectissem as preocupações actuais que tenho e as metas de exigência
que considero fundamentais para o progresso do país e a melhoria da qualidade
da nossa democracia. Como Presidente da República eleito por sufrágio directo e
universal, sou representante de um desígnio nacional que me compete actualizar,
em cada momento decisivo, perante o país.
O caminho é estreito, mas
saberemos estar à altura da exigência deste tempo. A globalização impõe-nos uma
permanente atenção, uma constante adaptação. A actual encruzilhada europeia,
como em todos os anteriores momentos de crise, aumenta os desafios.
As nossas instituições e os
nossos comportamentos políticos têm que ser adaptados ao tempo que vivemos, mas
sem transigências no que respeita aos valores que fundam a República. Temos que
fortalecer a democracia. O fortalecimento da democracia e da República exige o
reforço do prestígio das instituições e dos seus titulares. E o esforço desse
prestígio exige o combate à corrupção, ao negocismo, à partidarização do
Estado. Exige uma justiça mais eficaz, célere e universal.
A nossa modernização económica
pressupõe o rigor financeiro, mas exige mais. Temos que aumentar a nossa
competitividade e o nosso nível de vida. Temos que melhorar a educação e dar
essa melhor educação a mais portugueses. Não enchamos a boca com slogans e
palavras de ordem – por muito modernas que elas nos pareçam. Passemos aos
actos. Façamos mais e lamentemos menos. Assumamos melhor a responsabilidade que
cada qual tem e não achemos sempre que essa responsabilidade é dos outros.
Concentremo-nos na identificação das mudanças substanciais que temos que operar
na economia e na sociedade portuguesas.
Estas mudanças passam pela
modernização do Estado de Direito e têm que respeitar o Estado Social e o
imperativo da solidariedade entre os portugueses. Devemos saber preparar o
futuro. Prepara-se o futuro reforçando a ética da responsabilidade e do
trabalho, que é muitas vezes substituída pela da facilidade e do imediatismo.
Temos de nos habituar a premiar as obras, o mérito e os resultados – não as
promessas e as ilusões.
A cidadania, o pluralismo de
propostas e a participação política devem merecer a primazia própria de uma
democracia adulta. Devemos combater a intolerância e a exclusão. Apresentadas
as diferenças, assumidas as opções, clarificadas as alternativas, não podemos
perder tempo.
Para não perdermos tempo, temos
que nos entender sobre o chamado «mínimo essencial». Ele é crucial para
progredirmos. Sem esse mínimo, nenhum regime político democrático subsiste,
pois fica por assegurar a continuidade e a estabilidade das instituições e do
próprio tecido social. Se nos entendermos sobre o «mínimo essencial», seremos
capazes de fortalecer o Estado republicano e democrático e de mobilizar a
sociedade. Com a nossa capacidade de trabalho, com a nossa iniciativa, com a
nossa imaginação, com a nossa força de vontade e espírito de sacrifício,
recuperaremos a economia portuguesa, aproximando-nos dos nossos parceiros europeus
mais desenvolvidos.
O Portugal do 25 de Abril terá
sempre um papel a desempenhar na defesa do Direito e na manutenção da paz
internacional. É isso que se espera de nós. De um país que há vinte e nove anos
fez uma Revolução que constituiu para o Mundo um exemplo exaltante de civismo e
de esperança.
Viva o 25 de Abril
Viva a Liberdade
Viva Portugal