Pesquisar neste blogue

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

O Crucifixo - Um bem do património cultural do povo português!



A intolerância é em si uma forma de violência
e um obstáculo ao desenvolvimento do verdadeiro
espírito democrático.
(Mahatma Gandhi)

Que a Democracia é o melhor sistema político, ninguém tenha dúvidas.

E, porque é assim, bem merece, que sobre ela se faça um pouco da sua história, porque o título desta crónica – embora o não pareça  tem muito a ver com este sistema político – parecendo-nos que uma recente invectiva contra o Crucifixo - que já vem detrás, há muito tempo - devia ter merecido a atenção democrática de um Estado que se afirma laico, mas que não pode esquecer valores nacionais, sejam ou não religiosos, porque aquela parte do povo que se afirma laica não pode nem deve esquecer a outra, que é maioritária, porque ao fazê-lo, a democracia sai feriada, pela simples razão de não se respeitar a maior parte.

Mas vamos a um pouco de história.

A democracia começou no tempo em que a cidade de Atenas, a mais evoluída das cidades-estados (1) da Grécia Ocidental era governada pelo regime tirânico de  Pisístrato (2) que tomara o poder ilegalmente, exercendo um poder oligárquico.
Apesar de fazer cumprir os códigos de Sólon (3) o seu poder ditatorial continuado em 527 a.C. pelos seus dois filhos Hípias e Hiparco, foi extinto a partir do assassinato de Hiparco por dois jovens, Amódio e Aristógiton -  heróis gregos da Democracia que a História conhece como os  “tiranicidas” e cujo acto extremo levou à fuga de Hípias para a Pérsia, abrindo o caminho a que o “Partido dos Ricos” chefiado por Iságoras e o dos populares, chefiado por Clístenes passassem a disputar entre si o controle político da pólis, até ao momento em que Iságoras, que era apoiado por Cleómenes – rei de Esparta – conseguiu desterrar o seu rival, Cleómenes.

Valeu neste passo, o povo, que tendo-se revoltado, trouxe de volta o seu líder a quem foram dados poderes constituintes com o fim de se experimentar algo que era inédito: o regime governado directamente pela vontade maioritária do povo: A Democracia.
Em traços larguíssimos esta é a história dos primeiros passos democráticos e que levaria Péricles (4) a declarar: Vivemos sob a forma de governo que não se baseia nas instituições de nossos vizinhos; ao contrário, servimos de modelo a alguns ao invés de imitar os outros. Seu nome, como tudo o que depende não de poucos mas da maioria, é democracia.

O que veio a seguir, é que importa, sobretudo, ao tempo actual onde o modelo da democracia ateniense deu lugar às mais diversas, como a nossa, que  ainda tem muito caminho a percorrer para ser um regime puro, sem recorrer a atitudes que deixem ficar no povo dúvidas quanto à clareza das intenções confinadas a atitudes exercidas, ainda que pela força do voto, ou de tomadas de posse de Organismos da sociedade civil.

Tudo isto vem a propósito de uma afirmação de Vera Jardim - naturalmente de acordo com este governo - ao tomar posse no dia 5 de Setembro de 2016 como Presidente da Comissão de Liberdade Religiosa, quando disse "Crucifixos não deviam estar nas escolas. Devem ser retirados", o que é em toda a linha uma afronta ao que acima se diz sobre a valorização do património cultural decretada pela Assembleia da República, ao abrigo do artigo 161º da Constituição e, a ser assim, cabem por inteiro as palavras de Gandhi: A intolerância é em si uma forma de violência (...) 

Porque a intolerância em casos como este não pode passar sem ser repudiada, acresce, que o Crucifixo  faz parte do património cultural do povo português que ao longo da sua História viveu com ele.
Faz e vejamos porquê: Os Crucifixos integram-se na memória colectiva do povo português em honra à Cruz do Calvário que foi a inspiradora da cruz que andou nas caravelas e nas naus dos Descobrimentos e está, ainda hoje, nalguns lados erecta nos padrões que assinalam a chegada dos nautas e em muitos dos monumentos nacionais cinzelada nas cantarias.

Por outro lado a Assembleia da República, no tempo do Governo de António Guterres fez aprovar o seguinte Diploma:

DATA: Sábado, 8 de Setembro de 2001
NÚMERO: 209/01 SÉRIE I-A
EMISSOR: Assembleia da República
DIPLOMA/ACTO: Lei n.º 107/01
SUMÁRIO: Estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural
PÁGINAS DO DR: 5808 a 5829
A Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, para valer como lei geral da República, o seguinte:

E segue todo o articulado do texto promulgado em 22 de Agosto de 2001, e do qual nos servimos dos nºs 1 dos artigos 2º e 3º para sustentar a valia imaterial do Crucifixo como um bem imaterial plasmado nestes dois articulados:

Artigo 2.º
Conceito e âmbito do património cultural

1 - Para os efeitos da presente lei integram o património cultural todos os bens que, sendo testemunhos com valor de civilização ou de cultura portadores de interesse cultural relevante, devam ser objecto de especial protecção e valorização.
 2 - A língua portuguesa, enquanto fundamento da soberania nacional, é um elemento essencial do património cultural português.
 3 - O interesse cultural relevante, designadamente histórico, paleontológico, arqueológico, arquitectónico, linguístico, documental, artístico, etnográfico, científico, social, industrial ou técnico, dos bens que integram o património cultural reflectirá valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade.
 4 - Integram, igualmente, o património cultural aqueles bens imateriais que constituam parcelas estruturantes da identidade e da memória colectiva portuguesas.
 5 - Constituem, ainda, património cultural quaisquer outros bens que como tal sejam considerados por força de convenções internacionais que vinculem o Estado Português, pelo menos para os efeitos nelas previstos.
 6 - Integram o património cultural não só o conjunto de bens materiais e imateriais de interesse cultural relevante, mas também, quando for caso disso, os respectivos contextos que, pelo seu valor de testemunho, possuam com aqueles uma relação interpretativa e informativa.
 7 - O ensino, a valorização e a defesa da língua portuguesa e das suas variedades regionais no território nacional, bem como a sua difusão internacional, constituem objecto de legislação e políticas próprias.
 8 - A cultura tradicional popular ocupa uma posição de relevo na política do Estado e das Regiões Autónomas sobre a protecção e valorização do património cultural e constitui objecto de legislação própria.  

  Artigo 3.º
Tarefa fundamental do Estado

1 - Através da salvaguarda e valorização do património cultural, deve o Estado assegurar a transmissão de uma herança nacional cuja continuidade e enriquecimento unirá as gerações num percurso civilizacional singular.
 2 - O Estado protege e valoriza o património cultural como instrumento primacial de realização da dignidade da pessoa humana, objecto de direitos fundamentais, meio ao serviço da democratização da cultura e esteio da independência e da identidade nacionais.
 3 - O conhecimento, estudo, protecção, valorização e divulgação do património cultural constituem um dever do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.  
(...)
 Aprovada em 17 de Julho de 2001.
 O Presidente da Assembleia da República, António de Almeida Santos.
 Promulgada em 22 de Agosto de 2001.
 Publique-se.
 O Presidente da República, JORGE SAMPAIO.
 Referendada em 30 de Agosto de 2001.
 O Primeiro-Ministro, António Manuel de Oliveira Guterres.
   
Nota1 -  Os sublinhados são nossos.
Nota 2 - No documento hoje consultado está escrito:  O diploma ainda não sofreu alterações.
............................................................................................

Tudo isto vem a propósito de uma afirmação de Vera Jardim - naturalmente de acordo com este governo - ao tomar posse no dia 5 de Setembro de 2016 como Presidente da Comissão de Liberdade Religiosa, quando disse "Crucifixos não deviam estar nas escolas. Devem ser retirados", o que é em toda a linha uma afronta ao que acima se diz sobre a valorização do património cultural decretada pela Assembleia da República, ao abrigo do artigo 161º da Constituição e, a ser assim, cabem por inteiro as palavras de Gandhi: A intolerância é em si uma forma de violência (...)  pelo facto de ninguém ter a certeza, qual seria a resposta do povo português – no seu todo – se estava de acordo em ser retirado o Crucifixo das salas de aula.

Será que Vera Jardim desconhece o documento da Assembleia da República de que se faz menção, fazendo ressaltar do mesmo os dois artigos acima reproduzidos, ou quer fazer de todos os portugueses estúpidos?

Eu não queria – sinceramente o declaro – que as palavras de Gandhi tivessem razão, porque é meu desejo profundo que a Democracia cresça em Portugal para bem do povo de que sou parte e ao qual me orgulho de pertencer, mas não posso aceitar que alguns, só porque têm o poder interfiram com a minha consciência.


(1) - Nome dado à “pólis”
(2)  - Pisístrato (600-527 a.C.) foi um líder popular e tornou-se um tirano. Usurpou a autoridade que conseguiu manter à sua morte.
(3) - Como legislador, Sólon em 594 a.C. iniciou uma reforma que proibiu a hipoteca da terra e a escravidão por endividamento. Dividiu a sociedade pelo critério censitário (pela renda anual) e criou o tribunal de justiça.
(4)  - Político ateniense(495-429 a.C.) Chefe do partido democrático exerceu uma profunda  influência entre os seus concidadãos. Foi Chefe do Estado (443-429). Protegeu as artes e letras e embelezou Atenas com o Partenon.

"O Amor e o Tempo" - Um poema de António Feijó


O AMOR E O TEMPO


Pela montanha alcantilada
Todos quatro em alegre companhia,
O Amor, o Tempo, a minha Amada
E eu subíamos um dia.

Da minha Amada no gentil semblante
Já se viam indícios de cansaço;
O Amor passava-nos adiante
E o Tempo acelerava o passo.

— «Amor! Amor! mais devagar!
Não corras tanto assim, que tão ligeira
Não pode com certeza caminhar
A minha doce companheira!»

Súbito, o Amor e o Tempo, combinados,
Abrem as asas trémulas ao vento...
— «Porque voais assim tão apressados?
Onde vos dirigis?» — Nesse momento,

Volta-se o Amor e diz com azedume:
— «Tende paciência, amigos meus!
Eu sempre tive este costume
De fugir com o Tempo... Adeus! Adeus!

António Feijó, in 'Sol de Inverno'


António Feijó foi um Poeta de rara inspiração lírica que teve a arte dela estar presente em cada um dos seus poemas de fino recorte literário que ficaram a marcar no tempo, o modo - de uma profunda análise humana no campo da moral filosófica - como ele penetrava nos sentimentos dos seus leitores.

O AMOR E O TEMPO é um destes exemplos.

Vemos estampada ante os nossos olhos uma montanha alcantilada, como ele no-la apresenta e esta montanha é a nossa própria vida.

Sobem quatro personagens: o Amor, o Tempo, a Amada e o Poeta,

Num dado passo, o Poeta deu-se conta do passo adiantado do Amor que caminhava à frente e tendo visto que o Tempo acelerava o passo interpela o Amor pedindo-lhe para ir mais devagar, sentindo que a sua Amada dava mostras de lhe custar a subida da montanha... e ao criar esta imagem literária o Poeta põe-nos a pensar que na subida da montanha da vida cada um de nós - homem ou mulher - tem o seu passo e só o Amor o pode emparelhar.

Analisando o poema, era a Amada que tinha dificuldade em acompanhar o Amor e este que já tinha interiorizado a fuga não quis ouvir o rogo do Poeta - Amor! Amor! mais devagar! Não corras tanto assim, ainda suplicou ao Amor, mas este de combinação com o Tempo abrem as asas trémulas ao vento e à pergunta: Porque voais assim tão apressados?,  o Amor, volta-se para o Poeta e responde mal encarado, pedindo-lhe resignação: Eu sempre tive este costume / de fugir com o Tempo... Adeus! Adeus! 

Termina desta forma o sentido do poema, dizendo-nos às claras o Poeta que é sempre assim: o Amor: costuma fugir com o passar do Tempo.

Análise profunda é a que nos dá este belo poema de António Feijó, hoje, infelizmente, realizado em toda a nudez da sua verdade, pois, quando a montanha da vida se inclina um pouco mais, é o momento do Amor se ir embora, pela simples razão de um não fazer o sacrifício de acompanhar o passo do outro, o que devia acontecer quando se sente que o Amor - às vezes por motivos fúteis - abre as asas e vai-se embora.

domingo, 2 de outubro de 2016

"Há mais vida para além do orçamento"...


A afirmação "há mais vida para além do défice" foi uma forma enviesada de transpor para a opinião pública aquilo que não foi dito pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio no Parlamento, em 2003, por ocasião da cerimónia do 25 de Abril, quando, na realidade o que foi dito é assim: "há mais vida para além do orçamento", pelo que - não tendo eu qualquer incumbência de repor a verdade que não seja a mim mesmo e a quem me queira ler - aqui fica o discurso do PR, na íntegra com sublinhado meu no local onde está aquela frase.

Penso que, para bem da verdade se devem por - como se diz "os pontos nos ii" - que a tanto devíamos ser obrigados por uma questão de não se deixar envenenar o cenário político, neste momento em que vemos António Costa com todo o afã a controlar a despesa pública para que o défice não dispare - algo de que discordo - porque não pagar o Estado a quem deve a tempo e horas é uma má prática, porque o exemplo - doa a quem doer - tem de vir de cima.

E é, por ouvir que aquela frase de Jorge Sampaio - distorcida - que agora começa a aparecer "há mais vida para além do défice", a bem da verdade,  me leva a não tirar proveito dela, embora me pareça que o governo actual bem merecia que lhe fosse lembrado que há mais vida para além do défice, tendo em conta o que está a fazer.

Mas eu não o faço e, logo, não entro neste jogo de atribuir a Jorge Sampaio uma frase que ele não disse e, portanto, se há que criticar o governo de António Costa pelo seu apegado apelo ao cumprimento do défice, parecendo esquecer que há vida para além daquela meta económica, eu jamais o criticarei apegando-lhe uma frase que não foi assim pronunciada.

Discurso integral do PR em 2003 com o parágrafo em causa transcrito em letra mais grada.

Discurso do Presidente da República por ocasião da Sessão Comemorativa do 25 de Abril
Assembleia da República
25 de Abril de 2003 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores Embaixadores,
Ilustres Convidados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores

Ao renovar as minhas saudações à Assembleia da República, neste Dia da Liberdade em que evocamos a data fundadora do nosso regime democrático, quero partilhar convosco e, na vossa presença, com os portugueses, a minha reflexão activa e empenhada sobre a hora presente, que, como todos reconhecemos, se apresenta singularmente difícil, complexa e muito exigente. Mergulhados numa crise internacional, de que compreendemos a gravidade, mas de que mal adivinhamos ainda a extensão das suas consequências e perigos, é como se ela nos expusesse mais às nossas próprias fragilidades e carências, revelando-as por inteiro. Sentimos que, aos problemas que conhecemos e vivemos, muitos deles há demasiado tempo, se juntam agora novos problemas e novos desafios.

Esta situação, feita de velhos obstáculos e de novas dificuldades, dá-nos a amarga percepção de nos encontramos mais vulneráveis e mais indefesos para enfrentar o futuro. E deve dar-nos também a consciência, uma maior e mais aguda consciência plenamente assumida, de que o tempo corre contra nós, de que não o podemos perder, desperdiçar ou ignorar a sua passagem veloz e desafiadora. É nos momentos de crise que tudo se reabre: surgem, certamente, riscos e ameaças, mas também se oferece uma grande oportunidade de, desfazendo ilusões e enganos, nos reencontrarmos verdadeiramente connosco, com a nossa vontade e com a nossa ambição – uma vontade mais estável e uma ambição mais lúcida.

É nos momentos de dificuldade que devemos recusar a facilidade. É nos momentos de desafio que o pessimismo e o fatalismo têm de ser contrariados, quer nas suas faces mais tradicionais, as da resignação e da desistência, quer nas suas faces mais perversas, que são as da desresponsabilização, da incúria, da inércia, do incumprimento e do laxismo. É nos momentos de encruzilhada que é preciso ter a coragem de escolher o caminho, de afirmar responsabilidades, de agir consequentemente, de ir ao fundo dos problemas para os enfrentar e resolver, abandonando de vez aquela atitude que nos leva a falar muito das dificuldades, como se, em vez de falar delas, não tivéssemos o dever de as ultrapassar.

Que fique claro: no plano que ao Presidente da República compete, eu não me excluo, nunca me excluí, de dar um contributo constante e activo à resolução dos problemas. Pelo contrário! É nesse sentido que entendo e pratico a cooperação institucional com todos os outros órgãos de soberania. É a essa luz que tudo faço para dar maior coesão ao país, estimular as energias da sociedade, mobilizar os portugueses. Mas não há acção política digna desse nome se não houver metas de exigência e objectivos claros de médio e longo prazo. Compete ao Presidente da República tornar presentes essas metas de exigência e esses grandes objectivos. Compete-lhe também avaliar se se está no bom caminho para os alcançar, pois é nisso que se traduz o desígnio para o país de que o Presidente é portador e em nome da qual foi eleito directamente pelos portugueses. É fundado neste entendimento da minha função, que vos dirijo as palavras de hoje – palavras de preocupação, não vos escondo, mas também palavras de estímulo, de responsabilização e de confiança.

Por considerar que são esses os temas que exigem mais atenção na hora presente, vou falar-vos da crise internacional em que vivemos e dos problemas que ela nos põe, enquanto portugueses, europeus e cidadãos de um mundo globalizado; da situação económica e social do nosso país, pois nela se medem os resultados e os méritos das nossas políticas; e, finalmente, do Estado de direito e da necessidade de o aperfeiçoarmos para termos uma democracia de melhor qualidade.

Senhor Presidente, Senhores Deputados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores

Como disse, celebramos o 25 de Abril num momento em que a situação internacional nos motiva novas apreensões, nos põe novos problemas e nos exige novas responsabilidades. O século XXI começou mal, ao não cumprir as expectativas de paz e de progresso humano que o render dos milénios sempre faz nascer no coração dos homens. O terrorismo e a guerra marcaram tragicamente este início. Retiremos ao menos da experiência da tragédia os ensinamentos necessários para que permaneça firme a esperança em dias melhores.

O conflito do Iraque rasgou já parte do mapa de entendimentos, construções jurídicas internacionais e até de alianças estabelecidas após a Segunda Guerra Mundial, pondo a nu a debilidade de Organizações e dos seus códigos normativos. Em paralelo, revelou a dificuldade de reajustamento das respectivas estruturas perante a nova distribuição de poder entre os Estados e face aos inéditos problemas políticos, económicos, culturais e religiosos que caracterizam o nosso tempo. Reconhecemo-nos mais vulneráveis, até porque sabemos globais e difusas as novas ameaças decorrentes do terrorismo internacional, da proliferação de armas de destruição maciça, da criminalidade organizada, das crispações sociais, culturais e religiosas, do enfraquecimento de diversos valores estruturantes da sociedade e do progresso humano.

Há um sentimento de inquieta precariedade que atravessa países e povos e atinge também Portugal. A esse respeito, a rara amplitude das várias iniciativas pela paz que tiveram lugar no nosso país e a diversidade da sua composição têm um significado político, social e cultural que não pode ser ignorado. Talvez mais do que qualquer crise internacional anterior, aquela que agora vivemos tem suscitado entre nós extensos debates e análises. É esse um bom sintoma, um sinal de que vivemos numa sociedade viva, democrática, plural e participativa. No mundo global em que vivemos tudo respeita a todos, não devendo nenhum país alhear-se do que acontece e também lhe diz respeito. Para Portugal, é imperativo não se alhear deste processo de múltiplas recomposições da Ordem Internacional, que abarcará tanto a ONU como a União Europeia e a OTAN, pois em qualquer delas tem interesses próprios a defender. Se não o fizermos, outros o farão por nós – e não decerto em nosso benefício.

Os portugueses conhecem a minha posição sobre as condições em que foi lançada a ofensiva militar contra o Iraque. Findo o conflito, derrubada uma odiosa ditadura, esperemos que, a partir de agora, se procure repor e reforçar o papel das Nações Unidas, na consciência de que nunca como hoje foi tão necessária uma regulação das relações internacionais, assente no respeito do direito, que recuse posições hegemónicas e decisões unilaterais. Ao mesmo tempo, importa acautelar que, uma vez estabilizada a situação de segurança e resolvidas as emergências humanitárias, a reconstrução do Iraque – política, civil, física – se processe na mais estrita transparência, tanto de métodos como de finalidades, sob a égide da ONU, para que a auto-determinação e a rápida normalização do país, protegido na sua integridade territorial, possa ser levada a cabo pelo povo iraquiano. Faço votos de que a paz permita, finalmente, um futuro de progresso para este país, ancorado na sua história, nas suas capacidades humanas e nas suas vastas riquezas nacionais.

É esta também a hora em que tudo deve ser feito para pôr termo à situação de permanente conflito entre israelitas e palestinianos, garantindo a estes o Estado a que têm direito e àqueles a segurança do seu viver quotidiano. Seria trágico, nomeadamente para as relações entre o Ocidente e o mundo árabe e muçulmano, se às ruínas e vítimas da guerra do Iraque se continuarem a somar mais escombros e mais mortos em Nablus e Telavive. Trata-se de uma tarefa inadiável, quer no plano político quer no moral.

Devemos interrogar-nos sobre o lugar que pretendemos para Portugal neste mundo em mudança. Ora, na hierarquia dos interesses portugueses, é a UE que assume a posição primeira, decisiva e sem paralelo no plano da nossa estratégia externa. Quero reafirmar aqui tal prioridade, sobretudo neste momento, em que se assiste a uma das recorrentes crispações internas europeias, de antigos ou novos cepticismos.

Tal como em anteriores ocasiões, não é esta a altura para apressados requiems. Pelo contrário! E porque nisso estão interesses portugueses fundamentais, para além de uma fundada convicção de projecto, deveremos pugnar para que a União assuma resolutamente esta fase constituinte, para dar um novo fôlego à construção europeia neste dias de crise. Não tenhamos dúvidas: o próximo Tratado poderá influenciar em larga medida o nosso futuro colectivo, como portugueses e europeus. Importará velar pela defesa de um modelo que proteja o método comunitário, o equilíbrio interinstitucional, o princípio da igualdade dos Estados. Um modelo que promova o aprofundamento das políticas de solidariedade e o estabelecimento de um quadro de objectivos que ponham termo à debilidade da sua dimensão política, designadamente no plano da acção externa e de defesa, cuja frágil expressão vem hipotecando a capacidade da União de agir como actor global e de cumprir as suas indeclináveis responsabilidades internacionais.

Um modelo que reafirme e consolide os valores e objectivos comuns que têm inspirado esta comunidade de destino, a saber: a defesa dos direitos fundamentais, a democracia, o direito, a justiça social, a solidariedade, a igualdade. Um modelo que estabeleça uma mais próxima relação com os cidadãos, procurando dar respostas às suas crescentes inquietações e expectativas, única forma de criar essa ligação afectiva que está na base do cimento de qualquer comunidade. Uma Europa consolidada por um continuado desenvolvimento das suas políticas comuns, com mais coesão económica e social, com mais capacidade competitiva, como aponta a Estratégia de Lisboa. Importa ainda garantir um melhor espaço de segurança para os cidadãos que nela vivem, o qual, sem dano para os valores essenciais de liberdade, salvaguarde o progresso da abolição das fronteiras internas através de uma reforçada cooperação policial e judiciária, de um sistema integrado de vigilância das fronteiras externas, ou de uma realista aproximação do direito penal europeu.

Reitero a nossa convicção europeísta e quero saudar com esperança os dez novos países que se juntaram a nós há pouco neste grande projecto comum, hoje aqui tão simbolicamente representados pelos Presidentes dos seus Parlamentos. Reitero esta convicção não apenas para recordar uma conhecida posição pessoal, mas para reafirmar o que, desde os anos oitenta, constitui um património político do Estado português. Sublinho-a, porque a participação activa de Portugal no actual momento de construção europeia deverá mostrar aos nossos parceiros que a opção da Europa é um desígnio nacional maioritariamente assumido. É nesta comunidade de destino que encontramos os necessários apoios, mecanismos e solidariedades políticas para garantirmos a modernização do país, defendermos o progresso económico-social, e alargarmos a nossa capacidade de projecção externa, nomeadamente em áreas da tradicional presença portuguesa.

A crise do Iraque decerto obrigará a reequacionar o papel da Aliança Atlântica suscitando, porventura, decisões delicadas sobre a extensão das responsabilidades geográficas de uma diferente OTAN. A Aliança Atlântica continua porém a desempenhar um papel central no quadro da defesa e segurança da Europa. É uma aliança antes de mais defensiva, com um papel importante na manutenção da paz e da segurança internacionais, que deve ser cumprido com a crescente colaboração da União Europeia. A Aliança Atlântica não é, no entanto, uma caixa de ferramentas que possamos utilizar em qualquer circunstância sob pena de podermos minar a sua solidez.

A União Europeia deve assumir, em articulação com a OTAN, crescentes responsabilidades no domínio da defesa, em particular nas tarefas de manutenção da paz e da segurança no nosso continente. É importante que sejam fixados novos objectivos concretos à política de defesa europeia. Não se trata apenas de colmatar conhecidas lacunas. Trata-se, também, de definir um projecto que permita à União progredir gradualmente, mas com passos firmes, em direcção a uma capacidade autónoma de defesa que melhor garanta a paz.

Repito: a UE não pode falhar este seu encontro com a História. Os problemas decorrentes da presente conjuntura geopolitica colocam aos responsáveis europeus uma escolha clara: ou dotar a União de objectivos e instrumentos que lhe confiram uma efectiva capacidade de influência diplomática global, ou confiná-la a um estatuto regional. Ora, o progresso, a estabilidade, o equilíbrio do mundo necessitam de uma UE forte, sustentada por instituições sólidas, uma Europa reforçada por um indispensável pensamento estratégico que aproveite as várias experiências nacionais para lançar as bases de uma diplomacia externa interventiva, respaldada por uma adequada política de defesa.

É, aliás, possível – e os debates na Convenção parecem mostrá-lo – elaborar programas comuns que permitam agir com eficácia na gestão de crises, na prevenção de conflitos, na estabilização de situações. Sem atropelos de competências com a OTAN, mas antes melhorando colaborações e entendimentos, seria erro não aproveitar este momento de renovação do Tratado para finalmente se lançarem as bases adequadas de uma política comum de defesa, sustentada por um roteiro de objectivos e instrumentos (a sempre anunciada agência de armamentos seria um primeiro sinal concreto) que favoreçam o estabelecimento de capacidades militares autónomas, designadamente no campo da projecção de forças ou no domínio da informação, indispensáveis para agir – e ser credível.

Pretendemos uma Europa que não se esgote, no plano da sua política externa, na insuficiência declaratória e reactiva. Há, por isso, que assentá-la numa diferente vontade política que saiba identificar os interesses estratégicos europeus e adoptar os métodos para os cumprir.

Nenhum Estado-Nação poderá isoladamente fazer face à globalização dos problemas e aos desafios diversificados que dela decorrem. Portugal, país tradicionalmente aberto ao exterior e dele retirando garantias de independência, deverá assim saber, sem angelismos e com determinação, assegurar a sua presença nos núcleos avançados de decisão que tenderão a formar-se na futura Europa alargada.

Em democracia, deve haver uma avaliação permanente do interesse nacional que não é propriedade exclusiva de ninguém. Sem essa avaliação, os compromissos são ocos e superficiais. Mas isso não obsta a reconhecermos que a capacidade de acção internacional do Estado se reforça com a solidez e autenticidade dos consensos internos sobre as políticas externas, justificando o nosso empenho colectivo para definir linhas de orientação coerentes e duradouras.

Senhor Presidente, Senhores Deputados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores

Falo-vos agora da situação económica e financeira do País. O actual abrandamento da economia portuguesa veio dar destaque a problemas estruturais há muito diagnosticados e revelou novas vulnerabilidades, resultantes, em parte, da dificuldade em lidar com a intensificação da concorrência em mercados cada vez mais globalizados. A palavra "deslocalização" – pronunciada como se de uma fatalidade se tratasse – é cada vez mais utilizada para justificar o despedimento, sem pré-aviso nem justa causa, de milhares de pessoas, e não raramente somos convidados a um encolher de ombros perante a situação, com o argumento de que tudo não passa de um efeito da "globalização", também ela inevitável, também ela irreversível.

Reconhecer os problemas não significa, muito pelo contrário!, abdicar de pensar em meios adequados para os enfrentar. Alguns desses meios continuam a situar-se no quadro das políticas económicas e sociais de âmbito eminentemente nacional.

No contexto internacional, julgo que só uma perspectiva assumidamente reformista pode ser uma via possível de abordagem deste problema, que exige mais cooperação e mais regulação à escala supranacional. Regulação ao nível dos mercados financeiros, para combater excessos especulativos que, quando entregues a si mesmos, podem penalizar injustamente grupos sociais e povos já desfavorecidos; regulação ao nível dos sistemas e mercados de emprego, pondo fim a velhas e novas formas de exploração do trabalho contrárias à dignidade humana; regulação ao nível de equilíbrios ambientais que salvaguardem interesses vitais das gerações futuras; regulação ao nível dos fluxos informacionais, tentando evitar que o seu potencial universalista seja posto ao serviço da força bruta e de interesses particulares ilegítimos.

Portugal, uma pequena economia aberta, tem interesse directo em participar activamente em todas as iniciativas que contribuam para regular as relações económicas internacionais. E, desde logo, a nível europeu, lutando para que se aperfeiçoem e concretizem princípios e normas impeditivos de manifestações brutais de desregulação como as que permitem transferir, de um dia para o outro, recursos e postos de trabalho – tantas vezes criados com apoios comunitários - de países onde vigoram direitos sociais duramente conquistados para países onde tais direitos continuam a ser negados às populações.

Sem essa regulação e sem essas regras, é um mundo sem Lei que estamos a construir – e, como a história nos ensina, isso é abrir a porta a todos os perigos e a todas as ameaças.

Senhor Presidente, Senhores Deputados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores

A década de oitenta do século que há pouco findou ficou marcada, em muitos países da Europa Ocidental, por concepções e políticas defensoras de um recuo generalizado da presença do Estado na vida económica e social, apresentado então como uma nova receita infalível ou um novo dogma, que se apresentava em oposição ao dogma da estatização.

O tempo correu e a avaliação dos vários efeitos negativos de tal orientação sobre as condições de equidade e protecção sociais suscitou, ao longo do decénio passado, uma inflexão da acção política no sentido de assegurar que a transferência para a gestão privada de actividades antes confiada ao Estado decorresse no quadro de regras públicas respeitadoras do interesse geral das populações.

A questão está na ordem do dia em Portugal e é, e continuará a ser, de decisiva importância no futuro do desenvolvimento português e nas suas características fundamentais. Aceita-se que, por razões de eficiência económica e de controle da despesa pública, haja uma redução do papel prestador do Estado; mas também se sustenta que continue a pertencer ao Estado, através de códigos de regulação devidamente explicitados, e de uma acção fiscalizadora eficaz, a responsabilidade última pela defesa do interesse geral.

Tenho defendido ser crucial que a transferência de algumas funções do Estado para privados seja conduzida segundo princípios definidos com transparência e de acordo com procedimentos tecnicamente fundamentados e testados com o rigor e a seriedade requeridos pela defesa do interesse público. Entendo que, se assim não acontecer, é grande o risco de essa transferência vir a gerar custos sociais e económicos altamente gravosos, sobretudo para as populações mais frágeis, ainda que, no curto prazo, ela permita alcançar ganhos financeiros e políticos apetecíveis. Foi esta a perspectiva que adoptei ao apreciar o diploma sobre a Rede de Cuidados de Saúde Primários, o qual só entrará em vigor quando for aprovada a criação de uma entidade reguladora que enquadre a participação dos operadores privados e sociais no âmbito da prestação de serviços públicos.

Parece-me, por outro lado, indispensável que a Administração Pública se abra à inovação de forma a responder às expectativas dos cidadãos e a garantir que o interesse público seja salvaguardado. De facto, nesta progressiva alteração das funções tradicionais do Estado, ou a Administração Pública incorpora novos saberes e novas tecnologias e reforça valores fundamentais como a confiança, a responsabilidade, a imparcialidade, o profissionalismo e a qualidade na sua relação com o indivíduo, a sociedade e o mercado, ou, não o fazendo, a sua falta de capacidade reguladora trará consigo novas e mais dramáticas injustiças, ficando o Estado dependente de interesses privados ou sectoriais, quase sempre não coincidentes com o interesse público.

No tempo actual, aos Governos não se colocam apenas os desafios decorrentes da necessidade de aperfeiçoamento das funções de intervenção reguladora do Estado. Aos Governos, hoje, pede-se mais e melhor. Pede-se que seja capaz de uma visão estratégica de longo prazo e da capacidade de acção correspondente. Posto perante lógicas de mercado, em grande parte não reguladas e que cada vez mais ultrapassam as fronteiras nacionais, não pode o Estado – sobretudo em sociedades com múltiplas fragilidades estruturais, como é o nosso caso – abdicar de uma ambição forte, quer em matéria de reposicionamento estratégico da economia nacional, quer em matéria de construção de uma rede sustentada de protecção social para os cidadãos mais vulneráveis.

Factos recentes da nossa vida colectiva, como os que se têm traduzido por um acréscimo repentino do desemprego, são bem reveladores das responsabilidades e exigências estratégicas que, nos dois eixos enunciados, se colocam às políticas públicas. Começo pelo segundo. É indispensável estabilizar patamares generalizados de protecção dos cidadãos, de forma a prevenir e atenuar, tanto quanto possível, quer o sofrimento das pessoas mais expostas aos riscos, quer os próprios níveis de conflitualidade social. Nada menos aconselhável a este respeito do que provocar roturas forçadas em relação a consensos laboriosamente conseguidos ou a políticas anteriores testadas com êxito – o assunto é demasiado delicado para se compadecer com demarcações ideológicas excessivas ou com experimentalismos de eficácia duvidosa, como se, para inovar em política, tudo tivesse sempre de ser mudado ou se tivesse de recomeçar do zero.

Quanto à intervenção estratégica do Estado, esta tem de começar por exigir uma antecipação prudente dos cenários dentro dos quais se poderá processar o desenvolvimento empresarial e a criação de emprego no País. Garantir condições para o incremento da competitividade ou para a reestruturação atempada de certos sectores de actividade especialmente expostos à concorrência externa não pode ser considerado, como alguns ideólogos da não-intervenção sugerem, como uma intrusão desnecessária e perniciosa do Estado na vida económica. Em Países da União Europeia com estruturas produtivas bem mais sólidas do que as nossas, esse tipo de actuação é correntemente assumido de forma descomplexada, com vantagens visíveis.

É inquestionável que o Estado deve intervir em domínios tais como o do incentivo e apoio à inovação tecnológica e à formação continuada de recursos humanos. Com graves défices acumulados nesta matéria, custa a aceitar que sejam tão tímidos ainda os resultados obtidos. Como também não se compreende que os esforços feitos por sucessivos governos na definição do quadro institucional enquadrador deste tipo de intervenção possam ser postos em causa sempre que ocorre uma mudança política. Mais uma vez insisto nas vantagens de uma cultura de continuidade e amadurecimento relativamente a uma cultura da demarcação, tantas vezes meramente artificial, nominalista e quase ritual. Isto é tanto mais de sublinhar quando, muitas vezes e infelizmente, o que tem continuidade são apenas as más práticas.

Senhor Presidente e Senhores Deputados
Minhas Senhoras e meus Senhores

Mudar o estado actual da economia portuguesa é um desafio incontornável e urgente. Vivemos não apenas uma mera crise conjuntural, agravada pela situação internacional, mas também uma crise estrutural, que se reflecte nos défices acumulados da balança de transacções e no substancial aumento do endividamento externo do País. Temos de encarar de frente e com determinação os problemas de fundo da economia portuguesa, olhando menos para o passado e mais para o futuro. A retoma da economia portuguesa, para ser sustentada, tem de assentar na confiança dos portugueses, num projecto mobilizador e em boas políticas públicas.

A necessidade de controlar as finanças públicas – condição da nossa credibilidade externa – é uma obrigação fundamental que requer medidas estruturais e não se faz apenas com medidas excepcionais irrepetíveis nem com uma redução aparente do défice público. Mas esta exigência de consolidação orçamental duradoura não pode fazer esquecer a preocupação com a grave estagnação da actividade económica e o aumento do desemprego. É por isso que a política económica global não pode estar só centrada nas finanças públicas. Tem que dar corpo a uma estratégia de desenvolvimento económico e social capaz de assegurar o investimento, construir uma economia mais competitiva e uma sociedade mais solidária. O saldo orçamental é um instrumento e uma responsabilidade fundamental, mas não é o objectivo final da política económica. A margem de manobra da política orçamental é relativamente estreita, mas é possível alargá-la através, por exemplo, da reforma da Administração Pública, do combate à evasão fiscal e do recurso a parcerias entre os sectores público e privado.

É indispensável reformar a Administração Pública, não só para racionalizar e controlar a despesa, mas também para aumentar a eficiência da economia e o bem estar dos cidadãos. Não reformaremos, porém, a Administração Pública enunciando apenas a sua necessidade. É preciso ir sempre alterando e corrigindo o que está mal; muitas vezes, até nem são precisas grandes alterações legislativas. Se, por exemplo, os padrões de competência profissional prevalecessem, nas nomeações e promoções, sobre quaisquer outros e se as remunerações reflectissem o mérito no desempenho das funções, estaríamos certamente a melhorar, de forma significativa, a eficiência e qualidade. Como tenho incessantemente repetido, a luta contra a fuga ao fisco também é fundamental, quer para aumentar a base tributária e as receitas fiscais, quer para impedir o sentimento de injustiça provocado pela evasão fiscal, um sentimento que corrói o comportamento cívico dos cidadãos e enfraquece a coesão nacional ao não assegurar o princípio da igualdade dos cidadãos perante a Lei. O combate à evasão e fraude fiscais tem de ser prosseguido sem contemplações. Esse combate cabe antes de mais ao Governo. Mas os cidadãos também podem e devem colaborar, cumprindo os seus deveres e exigindo aos outros que também os cumpram.

A Resolução da Assembleia da República sobre o Programa de Estabilidade e Crescimento para o período 2003-2006, aprovada no início do ano, define orientações úteis para a solução do problema orçamental assente numa programação financeira plurianual e no contexto de uma estratégia de desenvolvimento económico e social a médio prazo. Essas recomendações não podem ficar como simples intenções. Têm de ter consequências, quanto mais não seja porque são necessárias para a solução dos problemas económicos e sociais do País. E ninguém melhor do que os Senhores Deputados para tirar as consequências das referidas recomendações, quer porque as mesmas foram aprovadas nesta Câmara por larga maioria, quer porque em parte respeitam a matéria da competência exclusiva da Assembleia da República.

O debate de política geral sobre a orientação da despesa pública, previsto, na Lei de Estabilidade Orçamental, para o próximo mês, será uma boa ocasião para centrar a discussão parlamentar nestas questões tão importantes e começar a dar corpo às recomendações da Resolução. Estou certo de que os Senhores Deputados aproveitarão a oportunidade para discutir a fundo, e numa perspectiva de médio prazo, a política económica e financeira de Portugal. Seria igualmente importante que essa política, ou algumas das suas componentes, pudesse beneficiar de uma base de apoio alargada. Seria também um bom serviço prestado ao País.

Mas como já disse, o problema orçamental da economia portuguesa, merecendo embora exigente e necessária atenção, não é o único. Há mais vida para além do orçamento. A economia é mais do que finanças públicas. O aumento do investimento, da produtividade e da competitividade da economia portuguesa é fundamental para o nosso futuro e requer o esforço continuado e empenhado de todos: governantes, empresários e trabalhadores. Uma economia competitiva não é a que se baseia em baixos salários, mas sim a que dispõe de um sistema produtivo moderno, inovador e tecnologicamente avançado, capaz de produzir bens e serviços de qualidade e bem valorizados nos mercados internacionais. Foi isso que quis sublinhar com a jornada que estou a realizar sobre a Inovação.

Temos de ter uma mão-de-obra mais instruída e qualificada para poder desempenhar tarefas mais sofisticados e produzir bens e serviços com mais valor acrescentado. A produtividade também depende da inovação em sentido amplo, designadamente na organização do trabalho, na diferenciação e qualidade dos produtos e na estratégia de comercialização. Repito: o que conta não é a mão de obra barata, mas sim a qualificação dos recursos humanos, a sua cultura e formação técnica.

Temos de continuar, por isso, a investir nas pessoas. Este é o nosso maior desafio. Esta é uma responsabilidade do Estado, mas também das próprias pessoas, a quem se pede uma vontade permanente para aprender ao longo da vida, e das empresas e restantes organizações, que não devem descurar a valorização do seu activo mais precioso: aqueles que nelas trabalham. A nossa educação tem de ter mais qualidade e produzir novas respostas à mudança dos nossos tempos. É indispensável que todos os cidadãos e profissionais possuam uma maior cultura científica e tecnológica sem a qual não se pode compreender o mundo em que vivemos e, muito menos, nele actuar conscientemente. Só assim poderemos fazer da Sociedade de Informação uma sociedade onde efectivamente todos tenham livre acesso ao conhecimento e à comunicação.

Podemos registar como um bom sinal a visibilidade que a ciência já alcançou em Portugal. Temos de continuar particularmente atentos a esta questão, para que os ganhos conquistados se consolidem e não possam vir a ser postos em causa, por forma a servirem para o lançamento de políticas dinâmicas de educação e de inovação. Demos passos consideráveis em pouco mais de uma década, mas ainda temos um longo caminho a percorrer.

O papel dos empresários é, também e como é óbvio, fundamental para aumentar a produtividade e a competitividade da economia. Precisamos de mais e melhores empresários. Precisamos de empresários com visão estratégica, com espírito de liderança e com capacidade de organização e de gestão das empresas. Precisamos de empresários inovadores nos produtos e nos processos de fabrico, capazes de organizarem e motivarem os trabalhadores. Só empresas inovadoras, tecnologicamente avançadas e eficientes podem pagar salários que se vão aproximando dos níveis europeus e permanecerem suficientemente competitivas no mercado global. Precisamos também de empresas e empresários que assumam a responsabilidade social que lhe compete prestando a devida atenção às questões do desenvolvimento sustentável, nomeadamente ao ambiente e à coesão social, e cultivando uma atitude ética socialmente responsável nas relações com os trabalhadores e com a sociedade em geral.

Precisamos de empresas economicamente competitivas, financeiramente sólidas e com accionistas e gestores com visão. Só assim poderemos preservar o controlo de centros de decisão estratégica para a nossa economia. Essa é uma tarefa que cabe primordialmente às empresas e um desafio à sua capacidade para estabelecerem as parcerias necessárias. Todavia, as regras do jogo da economia de mercado não são apenas estritamente económicas e o Estado não pode alhear-se da questão dos centros de decisão, recorrendo a instrumentos como a política de privatizações ou a gestão das suas participações sociais. Onde seja estratégico assegurar uma presença nacional relevante, deverá manter-se uma participação pública, ainda que como mero catalisador das parcerias. O Estado não deve ter vergonha em manter empresas com capital maioritariamente público; deve é dotar-se de instrumentos adequados para a sua gestão.

Seria prova de ingenuidade ou incúria se a questão dos centros de decisão não fosse tida em conta na condução da política económica, como aliás acontece nos nossos parceiros da União Europeia. Porém, o Estado tem de distinguir bem entre interesses particulares, nos quais não se deve envolver, e interesse nacional, que lhe cabe defender. Nesta perspectiva, qualquer tomada de posição ou actuação do Governo não pode ser feita à custa da eficiência económica e do interesse dos consumidores, nem à margem da economia aberta em que nos inserimos.

Senhor Presidente e Senhores Deputados

Há mais de duas décadas que a expressão "reformas estruturais" domina o léxico político português e a generalidade dos programas de governo. Algumas se fizeram e muitas outras ficaram por fazer ou pararam a meio. Feitas as contas, a sensação que fica é a de que não tem existido nem uma hierarquia de prioridades clara que ordene a sequência dessas reformas, nem uma determinação política suficiente, para realizar, de forma profunda e consequente, aquelas que são as mais difíceis de fazer.

Hoje, torna-se evidente que, entre os factores que debilitam a nossa capacidade de reagir a conjunturas adversas, avultam a insuficiente eficácia da administração de um Estado centralista e burocrático, as vicissitudes da reforma do sistema político, as graves consequências provocadas pelos problemas acumulados na administração da justiça e uma insuficiente conceptualização dos papeis regulador e fiscalizador do Estado. Não são incidentes de percurso que nos devem distrair da necessidade de se prosseguirem os esforços de reforma do sistema político. Esta exige um trabalho permanente, progressivo, persistente. A Comissão para a Reforma do Sistema Político tem desenvolvido uma importante acção e quero saudá-la por isso. O caminho já percorrido permite-nos esperar novos e mais consensualizados desenvolvimentos neste domínio, tão decisivo para a credibilidade da democracia portuguesa. A qualidade da nossa democracia depende, em larga medida, da nossa capacidade para renovar o contrato entre o Estado de direito e os cidadãos, aumentando a eficácia e a credibilidade do primeiro, a confiança e a participação dos segundos.

A democracia, para se revitalizar, precisa de sangue novo. A vivência democrática não deve ser confundida com consensos artificiais ou com o desempenho meramente burocrático, ou pior ainda, autista, dos mandatos representativos, de que só poderiam resultar um maior afastamento entre cidadãos e eleitos e um esvaziamento das virtualidades regeneradoras próprias do regime democrático.

O confronto vivo e clarificador de políticas alternativas e de programas de governo é essencial à sobrevivência e autenticidade da vida política em democracia. O que nos deve preocupar não é a diferença de posições ou a existência assumida de divergências, mas antes o perigo de vermos o debate político reduzido apenas a confrontações sobre o que é acessório ou mediaticamente compensador no curto prazo.

A vitalidade da democracia exige, por outro lado, uma atitude de cooperação institucional que passa, em primeiro lugar, por uma compreensão rigorosa das funções que cabem a cada um, mas também por uma assunção plena das responsabilidades próprias. Os acontecimentos mais recentes no plano internacional e as dificuldades que atravessamos, no plano interno, fizeram subir o tom do debate político. Nada há, nisso, de dramático, desde que saibamos, todos, centrar a discussão sobre o que é essencial para os interesses dos portugueses e para a posição de Portugal na Europa e no Mundo.

Nesta encruzilhada de problemas e desafios que se põem à nossa democracia, a questão da Justiça continua a ser motivo de grave preocupação e exigência inadiável de uma modernidade que tarda. Sem um sistema de administração de Justiça que funcione eficazmente, não é apenas a segurança nas ruas e a paz social que estão em causa. É a credibilidade e a qualidade da democracia. E é toda a vida colectiva, desde o desenvolvimento económico e social à transparência do exercício dos poderes públicos.

É a democracia e a sua prática quotidiana que devem firmar a ideia de que ninguém está acima da lei. É este princípio que torna incompreensível que, por exemplo, em matéria de corrupção e de evasão fiscal, situações cuja dimensão e gravidade já ninguém se atreve a negar, continuem por tratar, com a eficácia necessária, as questões relativas ao sigilo bancário e ao cruzamento de informação, com a inadmissível impunidade que daí decorre. Esta omissão é tanto mais grave quanto continuam a não ser tomadas, com carácter de permanência, iniciativas de investigação e de fiscalização generalizadas, que desencorajem os corruptos e os faltosos.

Mas é preciso também que os tribunais estejam aptos a responder em tempo aos resultados da investigação e da fiscalização. São conhecidas as carências neste domínio. Há hoje uma generalizada consciência das dificuldades existentes, que atravessam todo o sistema; e estão em curso iniciativas, como é o caso do anunciado Congresso da Justiça, de que se espera um impulso renovador. Nada, todavia, se fará de duradouramente eficaz se agentes políticos, magistrados e advogados, continuarem a tratar das questões da Justiça em circuito fechado, e não correrem o risco de abrir o debate da Justiça às disciplinas que com ela se relacionam por muito que isso possa pôr em causa rotinas e poderes instalados. As experiências, frutuosas, em tempos iniciadas, não devem desaparecer.

Outro tema que tem merecido a minha atenção constante por o considerar vital para o nosso futuro é o da descentralização. Nas ultimas décadas, os territórios ganharam novas e inesperadas competências: ensino e cultura, por exemplo, informação e comunicação, saúde, desporto, emprego e transportes. O processo desta mudança não está terminado. Dirão muitos, entre os quais me incluo, que precisa de ser aprofundado. Mas, paralelamente, enfrenta hoje um duplo desafio. Primeiro: garantir em todos eles o princípio da igualdade de oportunidades, isto é, a equidade territorial. Segundo: promover uma boa articulação entre os diversos níveis de competências territoriais através de uma eficaz descentralização administrativa, que é necessário retomar.

O quadro municipal, que tem constituído a única instância jurídico-administrativa da descentralização, é cada vez mais reconhecido como insuficiente para responder às novas questões da coesão e competitividade dos territórios. Novos quadros, resultantes de aglomerações de municípios, impor-se-ão num futuro próximo. Importa que a sua criação signifique também uma ruptura com modos de actuação em que se privilegia o curto prazo em detrimento do desenvolvimento sustentável, a competição com o vizinho em desfavor da cooperação, a consolidação do poder em prejuízo da abertura à inovação, à criatividade e à partilha.

Não tenho dúvidas em estar, como sempre estive, ao lado dos que querem novos estímulos a uma descentralização, de que resulta necessariamente a criação de novos poderes territoriais e novos métodos para o seu financiamento justo. Mas, atenção! É preciso que esses novos poderes territoriais tenham em conta, em primeiro lugar, que os parceiros com os quais se têm de articular são múltiplos, e que essa multiplicidade constitui uma força e um enriquecimento para a cidadania e o sistema democrático. Em segundo lugar, que o planeamento estratégico tem de se basear num sólido inventário das condições actuais. E em terceiro lugar, que as soluções institucionais da descentralização têm de assentar em realidades credíveis e consensuais. Não seria admissível que, perdêssemos novas oportunidades.

Senhor Presidente, Senhores Deputados,
Portugueses!

Neste dia, quis que as minhas palavras reflectissem as preocupações actuais que tenho e as metas de exigência que considero fundamentais para o progresso do país e a melhoria da qualidade da nossa democracia. Como Presidente da República eleito por sufrágio directo e universal, sou representante de um desígnio nacional que me compete actualizar, em cada momento decisivo, perante o país.

O caminho é estreito, mas saberemos estar à altura da exigência deste tempo. A globalização impõe-nos uma permanente atenção, uma constante adaptação. A actual encruzilhada europeia, como em todos os anteriores momentos de crise, aumenta os desafios.

As nossas instituições e os nossos comportamentos políticos têm que ser adaptados ao tempo que vivemos, mas sem transigências no que respeita aos valores que fundam a República. Temos que fortalecer a democracia. O fortalecimento da democracia e da República exige o reforço do prestígio das instituições e dos seus titulares. E o esforço desse prestígio exige o combate à corrupção, ao negocismo, à partidarização do Estado. Exige uma justiça mais eficaz, célere e universal.

A nossa modernização económica pressupõe o rigor financeiro, mas exige mais. Temos que aumentar a nossa competitividade e o nosso nível de vida. Temos que melhorar a educação e dar essa melhor educação a mais portugueses. Não enchamos a boca com slogans e palavras de ordem – por muito modernas que elas nos pareçam. Passemos aos actos. Façamos mais e lamentemos menos. Assumamos melhor a responsabilidade que cada qual tem e não achemos sempre que essa responsabilidade é dos outros. Concentremo-nos na identificação das mudanças substanciais que temos que operar na economia e na sociedade portuguesas.

Estas mudanças passam pela modernização do Estado de Direito e têm que respeitar o Estado Social e o imperativo da solidariedade entre os portugueses. Devemos saber preparar o futuro. Prepara-se o futuro reforçando a ética da responsabilidade e do trabalho, que é muitas vezes substituída pela da facilidade e do imediatismo. Temos de nos habituar a premiar as obras, o mérito e os resultados – não as promessas e as ilusões.

A cidadania, o pluralismo de propostas e a participação política devem merecer a primazia própria de uma democracia adulta. Devemos combater a intolerância e a exclusão. Apresentadas as diferenças, assumidas as opções, clarificadas as alternativas, não podemos perder tempo.

Para não perdermos tempo, temos que nos entender sobre o chamado «mínimo essencial». Ele é crucial para progredirmos. Sem esse mínimo, nenhum regime político democrático subsiste, pois fica por assegurar a continuidade e a estabilidade das instituições e do próprio tecido social. Se nos entendermos sobre o «mínimo essencial», seremos capazes de fortalecer o Estado republicano e democrático e de mobilizar a sociedade. Com a nossa capacidade de trabalho, com a nossa iniciativa, com a nossa imaginação, com a nossa força de vontade e espírito de sacrifício, recuperaremos a economia portuguesa, aproximando-nos dos nossos parceiros europeus mais desenvolvidos.

O Portugal do 25 de Abril terá sempre um papel a desempenhar na defesa do Direito e na manutenção da paz internacional. É isso que se espera de nós. De um país que há vinte e nove anos fez uma Revolução que constituiu para o Mundo um exemplo exaltante de civismo e de esperança.

Viva o 25 de Abril
Viva a Liberdade
Viva Portugal

Por bem cantar, mal não digas...



XXVII Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2 de Outubro de 2016


PARÁBOLA DOS SERVOS INÚTEIS

Os Apóstolos disseram ao Senhor: «Aumenta a nossa fé.» O Senhor respondeu: «Se tivésseis fé como um grão de mostarda, diríeis a essa amoreira: ‘Arranca-te daí e planta-te no mar’, e ela havia de obedecer-vos.» O bom servidor - «Qual de vós, tendo um servo a lavrar ou a apascentar gado, lhe dirá, quando ele regressar do campo: ‘Vem cá depressa e senta-te à mesa’? Não lhe dirá antes: ‘Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires, enquanto eu como e bebo; depois, comerás e beberás tu’? Deve estar grato ao servo por ter feito o que lhe mandou? Assim, também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: ‘Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer.’» (Lc 17, 5-10)
...................................................................................................

Para a vaidade humana esta parábola é difícil de aceitar, se na sua interpretação entrarem apenas julgamentos sumários despidos dos conceitos que estão, apenas, na esfera de Deus.

- Somos servos inúteis?

A parte humana do ser que somos não deixa de ficar intrigada com esta asserção dita tão categoricamente, e logo à primeira reflexão põe-se em desacordo, donde é preciso fazer uma chamada àquilo que em cada um de nós tem reflexos do amor divino. Deus não usa o homem, para no momento seguinte ao serviço prestado o descartar como este configurasse uma inutilidade, porque o que está dito, passa por uma chamada clara da subordinação do homem à divindade.

Tal como aquele que serve não faz qualquer favor, pelo facto de ter desempenhado uma missão que lhe estava confiada, de igual modo o homem nunca deve julgar-se credor de Deus no momento em que, conscientemente, cumpre uma qualquer obrigação nesta empresa que nos liga a Ele e através d’Ele a todos os homens.

Cumprimos, simplesmente, a nossa missão.

É um dos deveres que temos de respeitar nas relações com Deus, tomando depois de cumprir o que se impõe, uma atitude de humildade perante a divindade e, até, para com aquele a quem a nossa acção foi útil, não se ficando à espera de qualquer favor de Deus nem de uma qualquer recompensa pelo serviço praticado. Na sua mais íntima essência o homem está orientado para Deus, mas só O atingirá em plenitude quando a sua atitude tiver a humildade de reconhecer o pequeníssimo grão de areia que ele é, em face do seu Criador. O servo inútil é, pois, alguém que leva a vida a praticar por amor ao próximo e a Deus, acções concretas de bens praticados e, após eles se apaga como se fosse uma vela que encheu a casa de luz e ao apagar-se, parece – sem o ser – uma inutilidade.

Cumpriu o seu dever e inutilizou-se, apagando-se.
É este o sentido da parábola.

Feito por amor a Deus um qualquer serviço a favor do outro, o prestador deve remeter-se a um religioso recato, como que inutilizando-se, ou seja, passar despercebido, como se nada tivesse feito. Fez-se, apenas, o que devia ser feito.
Deus não quer que o homem se ensoberbeça pelo serviço que pratica em prol da comunidade ou do outro, porque fazendo-o por amor d’Ele, não pode existir qualquer obrigação recompensatória traduzida em benesses de se alcançar uma qualquer felicidade desejada de fortuna ou cargo social.
A doutrina evangélica condena esta postura.

Na humildade da sua condição o homem caminha para se atingir a si mesmo e isto só acontece quando o seu ser imperfeito se confunde com a divindade que trabalha dentro dele, devendo por isso, superar-se, julgando a sua inutilidade perante Deus como a maior utilidade que deve ter em todos os serviços que venha a praticar. É ponto assente que em consequência das acções menos conseguidas, da altivez, da toleima e da contumácia, o homem insubmisso entende mal a sua subordinação a Deus e lhe parece uma ofensa da divindade o chamamento de inútil que lhe é dado,  algo que a sua farronca não pode aceitar pelo facto dele, arrogantemente, julgar que pode pedir contas a Deus.

Mas Jesus sabia do que falava e, sobretudo, para quem falava, precisamente, para os seus discípulos a quem competia continuar a Mensagem que Ele trazia da parte do Pai e deveria pautar-se pela assunção plena e radical da humildade do homem perante Deus, mas que não fosse feita de uma subordinação humilhante com a perda da autonomia e da liberdade, mas de uma subordinação humílima, autónoma e em tudo no pleno uso da sua liberdade pessoal.
O que está em causa é a assunção deste dom.

Jesus foi bem claro na resposta que deu aos filhos de Zebedeu, Tiago e João que eram seus apóstolos, quando estes, talvez pensando nos bons serviços que prestavam e sentindo-se merecedores de um beneplácito especial pediram que estando o Mestre na Sua glória, sentasse um à sua direita e outro à sua esquerda. Conta S. Marcos que Jesus chamou-os para junto de si e disse-lhes: Sabeis que os que são reconhecidos como governadores dos gentios, deles se assenhoreiam, e que sobre eles os seus grandes exercem autoridade.  Mas entre vós não será assim; antes, qualquer que entre vós quiser tornar-se grande, será esse o que vos sirva; e qualquer que entre vós quiser ser o primeiro, será servo de todos(...) 

Como a parábola dos servos inúteis foi contada aos próprios discípulos, onde estavam Tiago e João, entende-se que eles, lembrando-se do pedido feito, compreenderam pela voz do Mestre o sentido daquelas palavras, incompreensíveis, apenas, para os homens cheios de si mesmos.

À beira do Paraíso!

Linha do Tua
..................................................................................................................

A serpente da via férrea de grande saudade, mostra que quem por ali passou esteve à beira do Paraíso...

A velha "linha do Tua" que encantou gerações, hoje não é a mesma, razão suficiente para ficar aqui esta lembrança de amor pelo novelo que se ia desenrolando em cima da linha férrea e sobre a qual, airosas, lentas por vezes, mas sempre lindas, as velhas carruagens puxadas pela máquina a vapor que deixava o novelo dos fumos da caldeira a desfazer-se contra as encostas verdes que iam beber, em baixo, nas águas borbulhantes do Tua.

Tudo isto, é hoje, uma doce lembrança de um tempo em que - posso dizer - ao passar por ali, estive à beira do Paraíso...

No meu cantar há saudades...


A água que enche o rio...



Na carta que eu te escrevi...